quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ibama, Belo Monte e um rolo compressor

Leonardo Sakamoto em seu blog


O blog Político, da revista Época, informa que a saída do presidente do Ibama, oficializada hoje, não se deu por motivos pessoais, como alega sua carta de demissão, e sim por conta de pressões para emitir uma licença ambiental para usina de Belo Monte, talvez a mais polêmica das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC):

Belo Monte derruba presidente do Ibama
 
O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Abelardo Bayma, pediu demissão do cargo por discordar da emissão da licença definitiva para a implantação da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, prevista para ser construída no rio Xingu, no Pará. Em carta enviada à ministra do Meio Ambiente, Izabela Teixeira, Abelardo alegou motivos pessoais para pedir exoneração do cargo. Mas revelou a amigos que deixou o posto depois de ter sido pressionado pela diretoria da Eletronorte a emitir a licença definitiva em nome do IBAMA para a instalação da usina. Ele estava no cargo desde abril do ano passado e é funcionário de carreira da autarquia.
Em reuniões com a diretoria da Eletronorte há dez dias, Abelardo se negou a emitir a licença definitiva para a construção da usina. Ele argumentou que o IBAMA não poderia emitir o documento porque o projeto ainda está cheio de pendências ambientais. Abelardo admitiu que o IBAMA poderia emitir a licença para a instalação e não a definitiva. A construção de Belo Monte foi um dos motivos que levou ao pedido de demissão da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Ela discordava da implantação da usina alegando que a obra causará fortes danos ambientais na região com o alagamento de uma área de aproximadamente 500 km2.
Marina Silva e a então ministra-chefe da Casa Civil, a presidenta Dilma Rousseff, que defende a antecipação dos prazos para a conclusão da usina, prevista inicialmente para outubro de 2015, um ano após o mandato presidencial. Para conseguir antecipar a conclusão, como quer Dilma, é preciso que o Ibama antecipe as licenças, mas o instituto alega que há falhas técnicas a serem reparadas no projeto. A previsão é que Belo Monte gere mais de 11 mil megawats para atender a uma população de 26 milhões de pessoas na região Norte.
Há uma outra versão que diz que a licença que não foi concedida não era a definitiva, mas uma especial para a obra. De qualquer forma, o ponto é o seguinte: Belo Monte será um grande gerador de impactos sociais e ambientais. Por exemplo, o Ministério Púbnlico Federal avalia em cerca de 40 mil o total de atingidos – incluindo populações tradicionais e indígenas.
Como já disse aqui em um post dias atrás, não adianta o governo federal elevar a questão dos direitos humanos nas relações internacionais e não executar o mesmo internamente. Se quiser fazer valer os direitos humanos em regiões rurais, a presidenta Dilma Rousseff terá que comprar brigas com áreas que lhe são importantes, como o setor elétrico. Coisa que, acredito, não vá fazer, muito pelo contrário. Incluída no PAC e no Plano Decenal de Energia (2007-2016), Belo Monte está planejada para ter uma potência máxima de 11,1 mil MW, mas a produção média estimada pela Eletrobrás é de 4.796 MW.
Lutou-se na ditadura não apenas por liberdade civis e políticas, mas por direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas em rito sumário para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas em rito sumário, xingando os opositores de “arautos do atraso”?

Educação e redução das desigualdades regionais são focos para erradicação da miséria

Felipe Prestes no Sul21

A erradicação da miséria é uma das metas da presidenta Dilma Rousseff, que já anunciou a criação de um PAC para cuidar desta missão. Para que todos os brasileiros tenham condições de viver com dignidade, especialistas apontam que o governo federal terá de dar atenção especial às desigualdades regionais. Os estudos mais recentes mostram que as zonas rurais das regiões Norte e Nordeste ainda são importantes bolsões de miséria. Mas a pobreza extrema é também um problema em todo o país, especialmente nas áreas periféricas das grandes cidades. Nestas localidades o desenvolvimento econômico já chegou, mas não incluiu a todos. É preciso apostar, principalmente, na qualificação destes excluídos, por meio da educação.
Os estudos mais recentes mostram que as regiões Norte e Nordeste ainda apresentam as maiores incidências de miserabilidade. Estados como Alagoas e Maranhão em 2008 apareciam ainda com mais de 30% de extremamente pobres segundo pesquisas de instituições como o IPEA e o Centro de Políticas Sociais da FGV. O estudo “Geografia da Pobreza”, da FGV, aponta que o Nordeste, em 2008, tinha 30,69% de miseráveis (cerca de 16 milhões de pessoas), e o Norte, 19,07% (pouco mais de três milhões de cidadãos), considerando a faixa de miséria ter renda domiciliar per capita abaixo de R$ 137.
Entretanto, em números absolutos, a região Sudeste é a segunda região com mais pobreza extrema. Os 9,68% de miseráveis no Sudeste significam quase oito milhões de pessoas. E as regiões Sul e Centro-Oeste também apresentam números significativos de extremamente pobres. O Sul tem cerca de dois milhões de miseráveis (7,29%), e o Centro-Oeste, 1,5 milhão de cidadãos (10,49%).
“Do ponto de vista da presença de pessoas pobres no total de sua população, o Norte e o Nordeste são as regiões com maiores bolsões. Por outro lado, é necessário considerar que mesmo as regiões ricas como São Paulo ainda tem um contingente absoluto de pobres considerável”, afirma Márcio Pochmann. Ex-diretora da Sudene e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social durante os oito anos de Governo Lula, a economista Tânia Bacelar chega a conclusão semelhante. “A pobreza no Brasil tem dois endereços: o Norte e o Nordeste, em especial na zona rural, e as grandes cidades em todo o país”.

Desigualdade histórica

Bacelar e Pochmann também concordam no diagnóstico para os altos índices de pobreza extrema nas regiões Norte e Nordeste. Segundo ambos, o olhar especial dado pelo Governo Lula a estas regiões não foi suficiente para colocá-las em igualdade com as demais, porque a desigualdade histórica era muito grande. “Na transição de um país rural para a sociedade urbana e industrial nós tivemos uma concentração das oportunidades econômicas nas regiões Sul e Sudeste do país. Nos anos setenta tivemos uma expansão da fronteira agrícola que permitiu ao Centro-Oeste ser o celeiro agroalimentar brasileiro. As regiões Norte e Nordeste convivem ainda com mazelas herdadas deste baixo dinamismo historicamente acumulado”, explica Pochmann.
“No século XX o Nordeste perdeu o trem do desenvolvimento industrial. Não houve investimentos em infraestrutura e em ciência e tecnologia”, afirma Tânia Bacelar. A economista diz que o presidente Lula “deu um empurrão” para a região ao realizar investimentos, como a construção de estradas, da ferrovia Transnordestina e a transposição do Rio São Francisco. Além disso, a Petrobras passou a ter no Governo Lula atuação bem mais significativa no Nordeste. Bacelar explica ainda que as políticas sociais como o Bolsa-Família tiveram grande impacto nas regiões menos desenvolvidas do país.

Bruno Alencastro/Sul21
Nas periferias das grandes cidades, pessoas precisam de qualificação (Foto: Bruno Alencastro/Sul21)

Desenvolvimento regional e qualificação

Para o presidente do IPEA, Márcio Pochmann, após o avanço das políticas sociais de âmbito nacional, o país está diante de um ‘núcleo duro’ da pobreza, que precisa ser combatido com foco em políticas regionais em paralelo às políticas nacionais. “Estamos observando uma convergência entre expansão econômica e melhor repartição destes ganhos na sociedade. Mas para os próximos anos, a continuidade desta trajetória implica em maior sofisticação das políticas públicas, considerando que estaremos diante de um núcleo duro da pobreza extrema. É preciso ter em vista especificidades regionais, é difícil chegar a esta pobreza consolidada em determinados lugares”, afirma o presidente do IPEA Márcio Pochmann. Para o pesquisador, o compromisso político assumido por Dilma Rousseff só será concretizado se for feito um esforço comum entre o governo federal, os poderes executivos estaduais e municipais, e a sociedade civil.
Segundo o estudo “Geografia da Pobreza”, da FGV, em 2008, mais de 34% dos moradores de áreas rurais no país estavam abaixo da linha da miséria. Tânia Bacelar afirma que esta questão se aprofunda ainda mais nas regiões Norte e Nordeste. “Há um hiato em termos de padrão de vida, especialmente entre as zonas rural do Norte e do Nordeste e o resto do país. Na zona rural do Nordeste há, por exemplo, 33% de analfabetismo enquanto a média nacional é de 9%”. A doutora em economia aponta que há também em outras regiões do país localidades com menor dinâmica produtiva.
No Rio Grande do Sul, isto se aplica às metades Sul e Oeste do estado e, em especial, à Região Noroeste. O economista da FEE Adelar Fochezatto explica que os últimos dados que mostram índices de pobreza por município do estado se baseiam no censo de 2000. Entretanto, os dados do censo de 2010 já mostram que há um êxodo populacional nestas regiões, o que dá fortes indícios de que elas continuam sendo as regiões com maior índice de pobreza extrema.
Fochezatto ressalta, contudo, que o maior número de pessoas abaixo da linha da pobreza extrema está mesmo na Região Metropolitana de Porto Alegre. “A participação de famílias pobres no total de famílias dos municípios é maior na Região Noroeste. Mas o número é pequeno na Região Noroeste, porque são municípios pequenos. Se a gente for pensar onde estão os pobres em números absolutos, eles estão na Região Metropolitana”.
Fochezatto explica as diferenças entre a miséria da Grande Porto Alegre e a das regiões menos desenvolvidas do estado. “A gente pode falar de dois tipos de pobreza. A pobreza por insuficiência de desenvolvimento, lá daquela região (Noroeste), por exemplo. As pessoas são pobres porque não têm alternativa. Já a pobreza da Região Metropolitana é decorrente de exclusão do processo de desenvolvimento. O desenvolvimento não incorpora todo mundo. Muitos ficam excluídos. Boa parte destes excluídos sai, inclusive, das regiões de menor desenvolvimento”.
A explicação de Fochezatto, não é diferente do que diz Tânia Bacelar. “No meio urbano, geralmente você tem pessoas (abaixo da linha de pobreza extrema) que não têm qualificação para se inserir vida da cidade, que não tiveram oportunidade. Em regiões menos desenvolvidas, as pessoas até têm ocupação, mas a atividade econômica é muito frágil”, explica a ex-diretora da Sudene.
Para Fochezatto, as ações para combater a pobreza extrema precisam ser no sentido de levar o desenvolvimento para regiões de economia retraída. “Lá é preciso pensar em empreendedorismo. Criar e atrair empresas, fazer convênios para produção de merendas escolares no campo. Alternativas para promover o emprego”. Nas grandes cidades, segundo o economista, é preciso investir na qualificação da mão-de-obra e em criar frentes de trabalho, investindo, por exemplo, em obras públicas.
O investimento em educação é um dos pontos-chave para a redução da miséria segundo Adelar Fochezatto. Um estudo recente da FEE, em parceria com a Secretaria de Justiça e Desenvolvimento Social do estado, mostrou que a pobreza extrema aparece no Rio Grande do Sul em maior número entre os jovens de até 20 anos e em entre os que têm menores índices de escolaridade. “Fazer com que estes jovens se mantenham na escola e tenham ensino de qualidade é um dos grandes desafios”, aponta.

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Pochmann foi um dos que sugeriu a criação de linha oficial de pobreza (Foto: Divulgação/UnB)

Como medir a pobreza

Uma das intenções da presidenta Dilma é criar uma linha oficial de miséria no país. O presidente do IPEA, Márcio Pochmann, foi um dos que sugeriu a criação do índice. “O critério é subjetivo. O que é miserabilidade? A gente (do IPEA) tem um critério, um quarto de salário mínimo per capita, outros têm outros valores”, explica.
Um dos índices é o dos Objetivos do Milênio das Nações Unidas, de um dólar per capita por dia – valor bem menor que os utilizados pelo IPEA e por outros institutos de pesquisa. Foi com base neste valor da ONU que o governo federal conseguiu retirar 28 milhões de pessoas da linha da miséria, o que não deixa de ser um grande feito. Pelo IPEA, os números são mais modestos. Entre 1995 e 2008, 13,1 milhões de brasileiros deixaram a pobreza extrema, segundo o instituto.
Mas um índice oficial de pobreza não é para saber se quem divulga dados está mais ou menos correto, e sim para que o governo possa estabelecer políticas para uma faixa determinada de pessoas. “Há governos que têm uma linha oficial de pobreza, como é o caso dos Estados Unidos. Pode-se achar que está errado, mas é sobre estes que o governo vai tratar como prioridade. Do ponto de vista do governo, o que interessa é ter um horizonte para que estabeleça qual é o segmento sobre o qual vai atuar de maneira mais privilegiada e para ter condições de saber se esta interferência é exitosa”, explica Pochmann.
Uma questão a ser analisada é que os índices que são geralmente utilizados para medir pobreza se baseiam apenas na renda. Assim, se o Brasil erradicar a miséria isto não significa que não haverá mais brasileiros analfabetos, ou vivendo ao lado de esgoto a céu aberto, por exemplo. E os serviços públicos costumam demorar mais para chegar do que a renda. “Os programas de transferência são os programas geralmente de menor custo, porque é tão somente a transferência da renda. Agora, um programa de saúde, por exemplo, precisa do equipamento necessário para operar, pessoas qualificadas”, explica Pochmann.
Ainda assim, o pesquisador defende que os indicadores de renda são eficazes para que mostrar quem vive em situação de vulnerabilidade social. “O indicador de renda é o indicador mais fácil de você identificar onde estão os pobres e os mais pobres entre os pobres. É claro que a pobreza não é só uma questão de renda. Mas você observando, atuando sobre aqueles que menos recebem, certamente estará atuando sobre os que têm mais dificuldades de acesso a outros aspectos que podem definir a pobreza de maneira mais ampla”, diz o presidente do IPEA.
Tânia Bacelar acredita que o governo federal deve utilizar vários índices para considerar a pobreza e a miséria. Ela ressalta, por exemplo, que o programa Luz Para Todos foi, para muitas pessoas, mais importante que o Bolsa-Família. “Acho que podemos ampliar o conceito de pobreza. Concordo que a renda é o aspecto prioritário, já que ela é necessária até para que se possa comer. Só que a pobreza é muito mais do que a renda. O pobre pode morrer, por exemplo, de uma doença que já não mata quase ninguém”.

Tráfico de órgãos: um relatório devastador


Em meio a críticas e deboche, relatório apresentado recentemente no Conselho Europeu reacende as discussões sobre a possibilidade dos prisioneiros do Exército de Libertação do Kosovo (UCK) terem sido vítimas de tráfico de órgãos.
por Jean-Arnault Dérensno diplo-br
Caiu como uma bomba o relatório sobre tráfico de órgãos apresentado pelo deputado suíço Dick Marty   diante do Conselho Europeu , que apontavam como vítimas os prisioneiros do Exército de liberação do Kosovo (UCK) 1. As alegações contidas no documento não são novas: esse tráfico já foi evocado nas memórias publicadas, em 2008, pela antiga Procuradora Geral do Tribunal penal internacional da ex- Iugoslávia (TPIY), Carla Del Ponte2. E em Kosovo, a hipótese de tal tráfico é um “boato” que circula há muito tempo. Da mesma maneira, a investigaçãopublicada em 2009 pelos jornalistas Altin Raxhimi, Michael Montgomery e Vladimir Karaj confirmou a existência de um verdadeiro “arquipélago” de centros secretos de detenção da UCK na Albânia3.
O relatório de Marty traz, no entanto, várias informações novas, permitindo compreender melhor os mecanismos desse tráfico. Centenas de prisioneiros capturados pelo UCK – principalmente sérvios do Kosovo e provavelmente romenos e albaneses acusados de “colaboração” – teriam sido deportados para a Albânia, em 1998 e 1999. Aprisionados em vários pequenos centros de detenção – entre eles a famosa “casa amarela” da pequena cidade de Rripë, perto de Burrel, visitada pelos inspetores do TPIY –, alguns deles teriam alimentado o tráfico de órgãos. Os prisioneiros eram conduzidos para uma pequena clínica situada em Fushë Kruja, a 15 km do aeroporto internacional de Tirana, assim que alguns clientes demonstravam interesse em receber órgãos. Eles eram, então, abatidos com um tiro na cabeça antes que os órgãos, principalmente, os rins, fossem retirados. Esse tráfico era dirigido pelo “grupo da Drenica”, um pequeno núcleo de combatentes da UCK reunidos em torno de duas figuras chaves: Hashim Traçi, atual primeiro-ministro de Kosovo e Shaip Muja, então responsável pela brigada médica do UCK e, hoje, conselheiro da saúde do mesmo Hashim Thaçi.
O relatório deixa muitas perguntas sem respostas, principalmente o número exato de prisioneiros vítimas desse tráfico. A justiça sérvia, por sua vez, fala de 500 pessoas deportadas à Albânia. Também não se sabe quais foram os parceiros estrangeiros desse tráfico e, sobretudo, quem foi beneficiado. O relatório revela, no entanto, que 60 pacientes do hospital universitário de Jerusalém teriam se beneficiado de um transplante renal em 2001, número  excepcionalmente elevado.
É importante dar ao suposto crime seu devido valor. Se o tráfico é comprovado, trata-se de um crime medonho contra a humanidade, que se situa, na ordem do horror, do mesmo nível do massacre genocida de Srebrenica. Outro ponto determinante é o fato de que o tráfico estaria ocorrendo até 2001, ou seja, até dois anos depois da entrada das tropas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Kosovo e da instauração do protetorado das Nações Unidas sobre o território. O relatório nota, aliás, que a partir de junho de 1999, a fronteira entre a Albânia e o Kosovo não estava submetida a nenhum controle real.
O relatório suscitou um clamor de protestos e de desmentidos. Alguns quiseram desqualificar Marty, apresentando o autor como um “adversário da independência do Kosovo” e até mesmo como um “inimigo do povo albanês”. O primeiro-ministro da Albânia, Sali Berisha, o rotulou abertamente de “racista”. Como suporte para essas afirmações, é frequentemente citada uma entrevista dada por Marty, em março de 2008, para o site da Rede Voluntária, na qual ele critica, sob o ponto de vista da legalidade internacional, a proclamação da independência do Kosovo4. Essa tomada de posição não traduz de maneira nenhuma uma “aversão” em relação ao povo albanês, nem ao povo do Kosovo, e o relatório de Marty não seria nem mais, nem menos legítimo se seu autor estivesse de acordo com a proclamação da independência, sob esse mesmo ponto de vista jurídico. Nota-se, enfim, que a imprensa da Albânia critica explicitamente o discurso “antiamericanista” de Marty, uma vez que este já revelou, em 2006, o escândalo das prisões secretas da CIA na Europa. Algumas declarações oficiais de Tirana, nesses últimos dias, associam o suposto “antiamericanismo” do relator e seu preconceito “antialbanês”.
Alguns acusam igualmente Marty de “preconceitos políticos”, pois ele publicou seu relatório alguns dias depois das eleições parlamentares organizadas em Kosovo, em 12 de dezembro, que foram manchadas por fraudes grosseiras cometidas, principalmente, ao que parece, pelo Partido Democrático do Kosovo (PDK), do qual Thaçi faz parte. Esse argumento é fácil de ser rejeitado, pois a concomitância das datas é apenas uma coincidência. As eleições foram antecipadas e a data fixada somente no início de novembro.
Por sua vez, diretamente acusado, Thaçi usou de artilharia pesada para responder a Marty. Em uma entrevista publicada em 30 de dezembro no Tages Anzeiger, de Zurique, ele retoma as acusações de racismo e chega até comparar o relatório à “propaganda de Goebbels”5. Do lado oposto, o assunto foi igualmente superexplorado no contexto político suíço, algumas semanas depois da adoção pelo referendum de uma lei que prevê a expulsão dos “estrangeiros delinquentes”. A presidente da Confederação, Micheline Calmy-Rey, preferiu então “adiar” o recebimento do “prêmio da diáspora” que deveria lhe ser atribuído, no fim de dezembro, pela embaixada do Kosovo, em Berna. Os albaneses, além de alimentarem os números de crimes na Suíça, seriam também “traficantes de órgãos”. Entende-se que alguns não querem reconhecer essa incriminação coletiva. 
Vários comentaristas estimam que seria “impossível” atribuir tal crime aos albaneses e tentam “relativizar” a importância do relatório lembrando a amplitude dos crimes cometidos pelos sérvios, no Kosovo e em outros lugares dos Balcãns. É surpreendente a mudança de muitos, que apresentaram Del Ponte como uma heroína da justiça internacional, quando ela perseguia os criminosos de guerra sérvios e passaram ao ponto de colocar em dúvida sua saúde mental, desde o momento em que ela evocou esse tráfico. Florence Hartman, antiga porta voz de Del Ponte, a criticou em várias entrevistas como irresponsável por ter apresentado “como fatos reconhecidos, simples hipóteses”, ressaltando que as investigações conduzidas pelo TPIY não tinham encontrado provas conclusivas. Contudo, essas investigações, especialmente na famosa “casa amarela” de Rripë, nunca puderam ser levadas a termo, em parte por causa da recusa de colaboração das autoridades albaneses6.
Mesmo esperando uma investigação séria e sistemática que possa trazer à tona a realidade do tráfico de órgãos e que acusações sejam eventualmente pronunciadas pelo tribunal competente, se pode considerar como verídicos vários fatos. A princípio, os corpos de centenas de sérvios e de outros prisioneiros do UCK nunca foram encontrados e é pouco provável que estejam sob o pequeno território do Kosovo, onde todos os eventuais lugares de chacinas e valas comuns já foram identificados e revirados. Também é certo que um número importante desses prisioneiros foi deportado para a Albânia, onde o UCK tinha uma rede de centros de detenção. Devemos admitir também que mais de dez anos depois dos fatos, é muito provável que esses prisioneiros estejam hoje, na maioria, mortos. Seus corpos tampouco foram descobertos na Albânia7.
Por outro lado, a existência de um tráfico de órgãos em Kosovo, alimentado por “voluntários” que vão vender seus rins já foi comprovado. Pacientes, principalmente israelenses, vão à clínica Medicus de Prístina para receber os órgãos saudáveis. Esse tráfico implica um personagem muito inquietante, um cirurgião turco chamado Yusuf Erçin Sönmez, conhecido por “Doutor Abutre”, atualmente foragido.  O caso da clínica Medicus, cujo processo acaba de ser aberto em Prístina, não está obrigatoriamente ligado ao eventual tráfico de órgãos praticado, dez anos antes, com prisioneiros do UCK, mas as coincidências chamam atenção8.
As reações da mídia, da classe política e mais amplamente da sociedade albanesa, especialmente na diáspora9, lembram a negação, há muito tempo demonstrada por grandes setores da opinião sérvia face aos crimes cometidos por seu próprio exército. Os dois argumentos centrais são os mesmos: “nosso povo não pode ter cometido tal atrocidade”, e “nosso povo foi vítima de crimes ainda piores do que esses que lhes são imputados”. A realidade dos crimes cometidos pelas forças sérvias no Kosovo não invalida, no entanto, a hipótese de que alguns albaneses tenham cometido outro crime, particularmente infame.
O problema é que “o povo albanês” não é de forma alguma culpado desse eventual tráfico, assim como “o povo sérvio” não tem que suportar a responsabilidade pelo massacre genocida de Srebrenica: esses crimes têm seus culpados e cabe à justiça definir a responsabilidade pessoal. Essa é a única forma de evitar que povos inteiros, e as gerações futuras, carreguem o fardo penoso de uma responsabilidade coletiva. No Kosovo, somente Albin Kurti, o governante do movimento Vetëvendosja (“Autodeterminação”) parece ter compreendido o verdadeiro significado do que está em jogo. Ele pediu oficialmente que a Justiça se ocupe do dossiê de Thaçi, estimando que essa seria a única forma de limpar a honra da totalidade dos combatentes e de simpatizantes do UCK da suspeita de uma responsabilidade coletiva10.
Na Albânia, uma das raras vozes críticas que se levantou foi a do ensaísta Fatos Lubonja, antigo prisioneiro político do regime stalinista e grande figura de esquerda. Em uma matéria publicada pelo jornal Panorama, Lubonja ousa estabelecer um paralelo entre esse suposto crime e o ocorrido em Srebrenica, enfatizando que os albaneses correm o risco, de agora em diante, de suportar o peso arrasador em seu consciente coletivo. Denunciando a “frente patriótica”, que se forma de Tirana à Prístina, para recusar que seja feita uma investigação, ele escreve: “a acusação é certamente pesada, mas recusar a investigação que a confirmaria ou a desmentiria é ainda pior. Essa recusa faz de todos nós culpados e creio que a maioria dos albaneses não gostaria de se sentir envolvido nesse tipo de crime”11.
As criticas de Marty apontam a ausência de provas fornecidas para seu relatório. A resolução adotada por unanimidade pela Comissão da assembleia parlamentar do Conselho da Europa pede justamente que as investigações sejam diligentes para encontrar essas provas. Na voz da sua representante de política externa, Catherine Ashton, a União Europeia avaliou que essa investigação deveria ser dirigida pela missão europeia Eulex, encarregada de ajudar as instituições do Kosovo na construção do Estado de direito. Sempre repetindo suas críticas, o governo albanês comunicou que não se oporia. Por sua vez, Del Ponte levantou o problema da jurisdição competente para julgar tal assunto: o TPIY não poderia mais abrir novos dossiês e seria necessário criar um tribunal ad hoc, ou transmitir o dossiê a Corte Penal internacional (CPI)12.
Enfim, as responsabilidades que apontam o relatório não concernem somente a Thaçi e os antigos dirigentes da guerrilha albanesa. No seu livro, Del Ponte explica o muro no qual ela se chocou, quando tentou, a partir de 2000, conduzir investigações sobre os supostos crimes do UCK, citando nomeadamente o chefe da missão da ONU, Bernard Kouchner, assim como o general francês Valentin, então comandante-chefe da KFOR. Para tentar explicar esse bloqueio, ela escreve: “Estou certa de que os responsáveis da MINUK e mesmo da KFOR temem por suas vidas e pela vida dos membros de suas missões”. Indo mais longe, ela acrescenta: “no espírito da MINUK e da KFOR, [Hashim] Thaçi e [o antigo chefe militar da UCK, Agim]. Ceku não representava unicamente um perigo para segurança de seu pessoal e o cumprimento das suas missões: eles colocariam em perigo toda a construção do processo de paz nos Bálcãs”13.
Em entrevista publicada em 21 de dezembro pelo jornal sérvio Politka, o capitão canadense Stu Kellock, antigo chefe do departamento de polícia de Minuk, declara: “Não posso afirmar que Kouchner conhecia o tráfico de órgãos, mas é impossível que não tenha tido informações sobre o crime organizado no Kosovo.” De fato, a luta contra o crime organizado representava uma das prioridades das missões internacionais. O capitão Kellock explica igualmente que “toda crítica contra Hashim Thaçi e os seus” era imediatamente rejeitada nos “círculos onde [ele] trabalhava”14.
Por “realismo político”, vários países ocidentais optaram por jogar a “carta” política que representava Thaçi. É sabido que este último era aconselhado, já durante a guerra, por agentes de certos serviços de informação, especialmente a DGSE francesa. A implicação direta de Thaçi em várias atividades ilegais (extorção, lavagem de dinheiro etc.) está igualmente comprovada. Por causa da preocupação de não “queimar” um precioso aliado político, os “protetores” ocidentais de Thaçi escolheram passar uma esponja em seus “pecados veniais”. Se uma investigação confirma a implicação de Thaçi em um abjeto tráfico de órgãos, seus “protetores” ocidentais correm o risco de serem prejudicados.
Interrogado por um jornalista sérvio sobre o tráfico de órgãos em 27 de fevereiro, quando estava fazendo uma viagem oficial ao Kosovo, Kouchner, então ministro dos Negócios Estrangeiros, explodiu de rir, antes de exclamar: “eu tenho cara de quem vende órgãos?”, e de sugerir ao jornalista “para ir se tratar”15. O riso de Kouchner ecoa hoje de maneira sinistra.
Jean-Arnault Dérens redator-chefe do Courrier des Balkans.

1 O relatório está disponível no site do Conselho Europeu.
2 Tradução francesa: Carla Del Ponte, A caçada. Os criminosos de guerra e eu, Paris, Heloïse d`Ormesson, 2009.
3 Ler Altin Raxhimi, Michael Montgomery e Vladimir Karaj, “ Albânia e Kosovo: os campos da morte do UCK”, O Correio dos Bálcãs, 10 de abril de 2009.
4 “Dick Marty: “A independência do Kosovo nao foi decidida na Prístina”, voltairenet.org, 12 de março de 2008.
5 “Martys Vorgehen erinnert mich an Goebbels”, Tages Anzeiger, 30 de dezembro de 2010.
6 Ler Ben Andoni, “Tráfico de órgãos na Albânia: na “clínica fantasma” de Carla Del Ponte”, O Correio dos Bálcãs, 19 de maio de 2008.
7 Lembremos que as autoridades albanesas tinham se recusado de acessar, em 2003, os pedidos dos investigadores do TPIY, que  gostariam de fazer as exumações no cemitério de Rrïpe. Essa recusa foi oficialmente justificada por “razões culturais”.
8 Ler Tráfico de órgãos: a vasta rede do “Doutor Abutre”, cirurgião turco” O Correio dos bálcãs, 21 de dezembro de 2010.
9 Ler Blerim  Shabani & Sevdail Tahiri, “O relatório de Dick Marty sacode a diáspora albanofone na suíça”,  albinfo.ch, 20 de dezembro de 2010.
10 Ler “Kosovo: Vetëvendosje pede que Thaçi seja apresentado a justiça”,      O Correio dos Bálcãs, 18 de dezembro de 2010.
11 Fatos Lubonja, “Pse refusohet raporti i Dick Marti?”, Panorama, 22 de dezembro de 2010.
12 Ler “ Tráfico de órgãos de UCK: Carla Del Ponte pela transmissão do dossiê a CPI” , O Correio dos bálcãs, 23 de dezembro de 2010.
13 Carla Del Ponte, A Caçada, op.cit., pp.460-461.
14 Ler Rade Maroevic, “Kusner je morao da zna”, Politika, 21 de dezembro de 2010, e R.S.V., “Tráfico de órgãos: kouchner sabia”, O Correio dos Balcãs, 29 de dezembro de 2010      
15 O vídeo desse encontro circula muito na internet. Podemos consultar no Dailymoton.

San Vicente-raríssimo-Milton Nascimento