domingo, 1 de novembro de 2009

Reflexões de Fidel...

Uma espécie em perigo de extinção

 
Por Fidel Castro
 
Na Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente convocada pela ONU no Rio de Janeiro, afirmei quando era o chefe do Estado cubano: “Uma espécie está em perigo de extinção: o homem”. Quando proferi e fundamentei aquelas palavras, recebidas e aplaudidas pelos chefes de Estado ali presentes – inclusive o presidente dos Estados Unidos, um Bush menos tenebroso que seu filho George W. – estes acreditavam dispor ainda de vários séculos para enfrentar o problema. Eu próprio não o via numa data tão próxima como sessenta ou oitenta anos.
 
Hoje se trata de um perigo realmente iminente e seus efeitos são já visíveis. A temperatura média aumentou 0,8 grau centígrado desde 1980, segundo o Instituto de Estudos Espaciais da NASA. As últimas duas décadas do século 20 foram as mais quentes em centenas de anos. As temperaturas no Alasca, no oeste canadense e no leste da Rússia subiram a um ritmo que duplica a média mundial. O gelo do Ártico está desaparecendo rapidamente e a região pode experimentar seu primeiro verão completamente livre de gelo no ano 2040. Os efeitos são visíveis nas massas de gelo de mais de 2 Km de altura que se derretem na Groenlândia, nas zonas glaciais da América do Sul, do Equador ao Cabo Horn, fontes fundamentais de água, e a gigantesca camada de gelo que cobre a extensa zona antártida.
 
As atuais concentrações de dióxido de carbono atingiram o equivalente a 380 partes por milhão, cifra que supera a geração natural dos últimos 1650.000 anos. O aquecimento está já afetando os sistemas naturais de todo o mundo. Se isso ocorrer, será devastador para todos os povos.
 
Desde a Antiguidade, os filósofos e pensadores mais avançados procuraram a justiça social. Apesar disso, a escravidão física durou legalmente até há 129 anos, quando se decretou a abolição da escravatura na colônia espanhola de Cuba.
 
Hoje, os Estados Unidos possuem milhares de armas nucleares que poderiam exterminar várias vezes a população do mundo. São, por sua vez, os maiores produtores e exportadores de todo tipo de armas. O ritmo acelerado das pesquisas científicas em todas as áreas da produção material e dos serviços, sob a ordem econômica imposta ao mundo depois da Segunda Guerra Mundial, conduziu a humanidade a uma situação insustentável.
 
Nosso dever é exigir a verdade. A população de todos os países tem direito de saber os fatores que originam a mudança climática e quais são as possibilidades atuais da ciência para reverter a tendência, se ainda se dispõe realmente delas.
 
O povo cubano, especialmente sua magnífica juventude, demonstrou que, ainda em meio a um brutal bloqueio econômico, é possível ultrapassar obstáculos inimagináveis.

Sobre a America Latina...

Saque na América Latina:

Caminhos e Agentes

Ana Esther CeceñaA presente crise do sistema capitalista “exige uma mudança de estratégia e uma mudança da modalidade de dominação que abarca todas as dimensões da organização social, territorial e política do sistema, sobretudo porque a necessidade das condições gerais de valorização correspondente aos momentos de ajustamento cíclico, característicos do regular funcionamento do processo de acumulação do capital, ocorre agora num momento de questionamento integral da crise sistémica, da incapacidade de resolver internamente a contradição progresso-depradação criada nos próprios fundamentos da sociedade capitalista como lugar de domínio da natureza pelo homem.

Por tudo isto a actual crise não é apenas financeira nem se resolve com subsídios ou com fusões e centralização do capital”.

Ana Esther Ceceña* - www.odiario.info

Actualmente, estamos em crise. Crise sistémica que não anuncia uma queda ou o rebentamento imediato, mas que exprime a vocação mutante do capitalismo e a sua capacidade de adaptação ou reeducação às condições de mudança do que acontece, não só economicamente mas também socialmente. No entanto, o carácter sistémico da crise mostra a não sustentabilidade civilizacional do capitalismo.

Nas actuais circunstâncias, a crise cíclica é indicativa da incapacidade do mercado em garantir por si só as condições gerais do processo de acumulação do capital e de apropriação da riqueza e, nesse sentido, apela aos mecanismos de contenção social para assegurar tudo o que o mercado não consegue tornar coeso e controlar, sobretudo quando a economia capitalista é ao mesmo tempo legal e ilegal. A ninguém escapa que a crise económica não está a tocar nos sectores ilegais que, indubitavelmente, contribuíram para a gerar e muito provavelmente serão parte da sua solução.

De qualquer modo, a crise exige uma mudança de estratégia e uma mudança da modalidade de dominação que abarca todas as dimensões da organização social, territorial e política do sistema, sobretudo porque a necessidade das condições gerais de valorização correspondente aos momentos de ajustamento cíclico, característicos do regular funcionamento do processo de acumulação do capital, ocorre agora num momento de questionamento integral da crise sistémica, da incapacidade de resolver internamente a contradição progresso-depradação criada nos próprios fundamentos da sociedade capitalista como lugar de domínio da natureza pelo homem.

Por tudo isto a actual crise não é apenas financeira nem se resolve com subsídios ou com fusões e centralização do capital. Isso permite seguir em frente mas, simultaneamente agrava a situação de suicídio técnico em que irremediavelmente se encontra o capitalismo, apesar da sua capacidade em manter o mundo inteiro sob as suas regras de funcionamento, mesmo sabendo que, paradoxalmente, tendem para a insustentabilidade da própria vida.

A IIRSA COMO ESTRATÉGIA DO PODER HEGEMÓNICO

A força interna do capitalismo defende-se e reconstrói-se permanentemente através do desenho de um conjunto de estratégias integrais, multidimensionais, que se estendem planetariamente, entre os quais se encontram os megaprojectos de reordenamento territorial, que também são necessariamente de reordenamento político, como o da Integração Regional da América do Sul, IIRSA [na sua sigla em castelhano]. A principal virtude de projectos como a IIRSA é a de serem capazes de restabelecer e potenciar as condições gerais da valorização, mais do que a de gerar chorudos negócios na sua própria execução, o que também acontece.

Observados numa perspectiva ampla, a IIRSA e o Plano Puebla Panamá são duas partes do mesmo projecto: supostamente, ambos foram concebidos por um Presidente da região, num caso Vicente Fox, do México, e no outro Fernando Henrique Cardoso do Brasil. Com toda a diferenciação cultural, intelectual e política que há entre os dois, presuntivamente desenharam ao mesmo tempo dois projectos semelhantes e geograficamente iguais [empatados]. As negociações e execuções específicas variam de acordo com as condições subregionais, mas os fundamentos dos projectos são: construir uma infra-estrutura de comunicações, transportes e geração de energia que constitua um ágil e dinâmico sistema circulatório que permita enlaçar as economias regionais com o mercado mundial.

Um único projecto de mercantilização total da natureza para uso massivo desde o centro do México até ponta da Terra do Fogo. Não se trata da exploração dos elementos naturais para uso doméstico, nem local nem nacional, mas da sua exploração de acordo com as dimensões de um comércio planetário sustentado em cerca de 50% por empresas transnacionais. A infra-estrutura que se propõe – e que é exigida – é precisamente a que permitirá à América Latina converter-se numa peça chave do mercado internacional de bens primários, à custa da devastação dos seus territórios, abrindo novamente essas veias da abundância que sangram a pachamama e que alimentam a acumulação de capital e a luta mundial pela hegemonia. O desenho desta infra-estrutura vai do coração às extremidades, do centro da América do Sul até aos portos no caso da IIRSA e da Colômbia-Panamá até à fronteira com os Estados Unidos no caso do Projecto Meso-americano, novo nome do Plano Puebla Panamá.

A dimensão da exploração do território da América Latina e da extracção dos seus valiosos elementos encontra-se em relação com os crescentes níveis exigidos por uma economia mundial que responde às vertiginosas necessidades de multiplicação dos próprios lucros muito mais do que às necessidades reais da população mundial, e apela a uma maior agilidade da circulação de mercadorias para reduzir ao máximo os momentos improdutivos do capital. O nível de extracção e de produção das empresas envolvidas, ainda que a sua origem seja local, modificou-se na proporção desta nova procura de recursos. Casos como o de Vale do Rio Doce são sintomáticos das novas dinâmicas: as empresas enraizadas na produção mineira numa zona de grande abundância de jazidas são, a pouco e pouco, estrangeiradas através da colocação de acções na bolsa de valores de Nova Iorque ou outras idênticas e os seus níveis de produção, já elevados, multiplicam-se de acordo com as necessidades de valorização dos capitais proprietários. O ritmo dos comboios que transportam o ferro até ao porto incrementou-se e a quantidade de vagões carregados multiplicou-se nos últimos anos, assegurando com isso a posse privada, agora fora da terra, já na qualidade de mercadoria, de um elemento natural que se converteu em parte importante da disputa hegemónica. Com isto se aumenta o saque de que foram objecto os povos latino-americanos desde há mais de 500 anos, com o começo da conquista-colonização, e se submetem os territórios, espaço da relação natureza-sociedade a uma depreciação selvática e irreversível. [1]

A exportação de matérias-primas, vista pelos analistas macroeconómicos como um sinal de desenvolvimento e prosperidade está a alterar as próprias condições de vida pelo seu carácter massivo e por responder a necessidades alheias às das sociedades locais. O mesmo ocorre com as modernas vias de transporte que se propõem e que se estão a preparar com a IIRSA. As rotas da IIRSA colocam o enorme território sul-americano à disposição das necessidades de saque dos recursos estratégicos, como a pode observar-se no mapa 1, que mostra o que considero o desenho estratégico da IIRSA.



Agora os canais inter-oceânicos não procuram a rota mais curta entre oceanos mas a mais vasta e rica. Os 80 km do Canal do Panamá são agora substituídos por 20 km da rota amazónica. Esta diferença de critérios evidencia que a conexão tem outros objectivos diferentes dos do passado, de acordo com o aumento das capacidades e envergadura da apropriação capitalista. Com as rotas da IIRSA assegura-se não apenas a extracção de recursos de cada uma das suas partes, mas que essa extracção se realiza de forma articulada. Ligam-se interesses nacionais ou locais com interesses transnacionais e inclusive estratégicos.

As rotas da IIRSA passam pelas recursos de água, de minerais, de gás e petróleo; pelos corredores industriais do subcontinente; pela áreas de diversidade genética mais importantes do mundo, pelos refúgios indígenas e por tudo o que é valioso e apropriável na América Latina. A ampliação dos caudais dos rios para os dedicar a um trânsito intenso estão a pôr em risco os pantanais e a degradar as condições de vida de espécie animais e vegetais, ao mesmo tempo que violenta os modos de vida de comunidades confinantes ou a eles ligadas; a exploração e exportação massiva de minerais castiga a selva com um tráfego pesado constante que vai rapidamente comendo a mancha amazónica e ameaça os glaciares; as modalidades locais de organização da vida vêem-se confrontadas com uma dinâmica vertiginosa que lhes é alheia e que as altera clara e irreversivelmente.

O EMARANHADO DE INTERESSES DA IIRSA

Têm sido largamente denunciados os danos presentes ou previsíveis presentes neste projecto, mas apesar disso a insistência em o manter é tenaz. Cabe então perguntar que espécie de interesses prevalece sobre os elevadíssimos riscos ecológicos e sociais inerentes à IIRSA?

Por um lado, o facto de contar com a anuência ou inclusivamente o entusiasmo de muitos governos latino-americanos é o resultado de uma combinação em que os governos e empresas locais recebem alguns benefícios que, ao seu nível, podem ser significativos.

Por outro lado, evidentemente que uma rede infraestrutural das características da que está planeada é indubitavelmente uma facilidade para as actividades extractivas, e económicas em geral, dos grandes capitais do mundo na busca de recursos competitivos e valiosos, que em muitos casos podem ser considerados estratégicos para a reprodução global do sistema e, portanto, para assegurarem não só as condições de vida do capitalismo mas também a sua hegemonia.

A construção da própria infra-estrutura parece não ser o prato mais cobiçado. As grandes transnacionais têm como foco dos seus interesses muito mais a exploração dos recursos que são grandes negócios para os investidores locais, mas relativamente modestos para elas, como a construção de estradas, caminhos-de-ferro, hidrovias, represas e outras semelhantes.

Pela forma como se comportaram os governos e as empresas, parece haver um quase acordo de complementaridade em que ambos beneficiam, e por isso ambos defendem o projecto como próprio. Esta bizarra comunhão de interesses cresceu ultimamente com a entrada de capitais estrangeiros em empresas locais, a maioria das vezes dedicadas a actividades extractivas, como é o caso de Vale do Rio Doce. Estas empresas potenciam-se, aumentam a sua produção e, evidentemente, as suas exportações; ligam-se mais estreitamente ao mercado mundial, mas continuam a aparecer como nacionais, apesar de em vários casos o seu capital já ser maioritariamente estrangeiro.

Actualmente, talvez a empresa sul-americana mais favorecida pela IIRSA seja a Odebrecht, que se apresenta como brasileira. Por se tratar de uma empresa de engenharia e construção, nesta primeira etapa está envolvida em projectos em toda a região da IIRSA.

A Odebrecht tem investimentos em 13 países na América para além do Brasil. Geograficamente vai desde o México até à Argentina e também com actividades no Caribe (República Dominicana), América Central (Costa Rica, Panamá) e América do Sul (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai), como pode ver-se no mapa que mostra a proximidade das áreas dos seus projectos de investimento com as de recursos mais valiosos.



Historicamente, nas actividades extractivas registou-se sempre a presença de grandes transnacionais estrangeiras, daí esta ligação de interesses que mencionámos. É um sector em que a concorrência dificulta a entrada de capitais nacionais, sobretudo depois da desprotecção e da mudança de critérios sobre os patrimónios devidas ao neoliberalismo.

Revendo as listas das 500 maiores empresas do mundo, há muito anualmente elaborada pela revista Fortune, e a das 500 maiores da América, elaborada pela revista América Economia, o que se observa é a escassa participação de empresas latino-americanas de maior envergadura. Ainda que se encontrem nestas actividades, a sua participação é de muito menor importância, excepto os casos de Odebrecht, Aracruz e Votorantim, originalmente as três de capital brasileiro.

A extracção de petróleo e gás é em alguns países exclusivo de empresas do Estado, mas no que respeita aos outros países, as empresas principais neste sector são a Exxson, Royal Dutch, British Petroleum, Chevron, CONOCO-Phillips, ENI, Petrobras, Repsol-YPF, SK, Occidental Petroleum, Lukoil, En Cana e Oil and Nature Gás. A localização de projectos destas empresas não deixa dúvidas sobre a sua boa perspicácia, visto que se encontram em todas as regiões de importantes jazidas, como se observa no mapa. Estas localizações vão ser protegidas pelas facilidades das infra-estruturas, de tal forma que o seu acesso ao mercado mundial, que em si já é bastante ágil, como se pode observar no mapa. Estas localizações ficam protegidas pelas facilidades das infra-estruturas projectadas pela IIRSA, de tal forma que o seu acesso ao mercado mundial, já bastante ágil como vimos, ver-se-á ainda melhorado.



Os minerais, elementos que definem a estrutura material básica dos processos produtivos, têm na América Latina um dos seus espaços de maior diversidade e abundância. Os minerais metálicos são um foco de atracção de grandes empresas de dimensão planetária como a Anglo American, BHP Billinton, Rio Tinto, Vale do Rio Doce, Xstrata e Nippon Mining Holdings, e a sua distribuição territorial leva-as a diversas regiões sul-americanas, regiões que, em todos os casos, têm a virtude de estarem ligadas através das rotas da IIRSA (ver mapa)



A apropriação dos bosques, naturais ou artificialmente criados, tem as suas principias zonas em pontos muito específicos. O seu desenvolvimento territorial é muito menos extenso que o das actividades anteriores, mas também se trata de capitais de enorme montante, ligados à produção de celulose e papel (ver mapa). As principais empresas do sector são a Stora Enzo, Weyerhauser, Aracruz Celulose, Votorantim Celulose, Kablin, Suzano Papel e Celulosa, CELCO y CMPC, as duas últimas com investimentos no sul do Chile.



Evidentemente, além das empresas mencionadas há todo um emaranhado de empresas mais pequenas ligadas às actividades das maiores e totalmente dependentes daquelas, ou os seus níveis de produção não se repercutem nos grandes mercados nem definem as dinâmicas da economia.

A ideia que preside à apresentação do desenvolvimento geográfico destes grandes investimentos vem do interesse em ver a capacidade destes agentes capitalistas para ocupar e definir o território e as suas dinâmicas. Uma das coisas que nos devem preocupar é a forma como o território está a ser explorado e como projectos como a IIRSA reforçam essa tendência.

E, na realidade, apesar de neste campo podermos constatar a grande quantidade e diversidade dos interesses em jogo, é o sujeito hegemónico quem está à frente do processo. Nós sabemos quanto é o território ocupado por bases militares estadunidenses (território estrangeiro), mas seria necessário medir o território ocupado pelas propriedades das empresas para se ficar com uma ideia da dimensão territorial da dominação.

Com esse cálculo ficaríamos em melhores condições para valorizar se a IIRSA é um projecto dos Estados sul-americanos ou uma exigência desses grandes capitais que arrastam os Estados para a formulação de políticas que os beneficiam pois, que são hoje os Estados se não uma parte desse sujeito económico, desse sujeito dominante que por vezes se chama capital brasileiro, outras vezes capital equatoriano, muitíssimas vezes mais capital estadunidense mas que, por fim, revela uma fusão de interesses relacionados com o grande capital das empresas transnacionais, impulsionadas, protegidas e representadas pelo Estado norte-americano?

Inclusive, hoje, ainda que seja difícil falar de nacionalidade do capital, efectivamente há um enorme peso do capital estadunidense em todas as actividades mais importantes, mais dinâmicas e com maior futuro no mundo. É isso que autoriza a continuar a falar do sujeito estadunidense como sujeito hegemónico, isto é, esse grande capital que se aglutina à volta do Estado estadunidense, ainda que contenha alguns mexicanos, brasileiros, japoneses ou capitais provenientes de qualquer outro lugar, mas organicamente incorporados nessa estrutura de poder.

Notas:
Este trabalho contou com a valiosa contribuição de Rodrigo Yedra, membro do Observatório Latinoamericano de Geopolítica.

[1] Basta ver o que está a acontecer no estado brasileiro do Pará, originalmente selvagem, hoje cheio de pastagens para o gado e de crateras mineiras que desflorestam e transformam as lógicas locais de sociabilidade e organização da reprodução.





* Ana Ceceña é Directora do Observatório Latino-americano de Geopolítica no Instituto de Investigações Económicas da Universidade Nacional Autónoma de México.


Este texto foi publicado em www.rebelión.org/


Tradução de José Paulo Gascão

Prioridade na campanha eleitoral: heresia ou alternativa?


Milton Temer
Milton Temer

Texto de Milton Temer

É vasta a pauta de reflexão que se apresenta para a esquerda latino-americana com respeito ao socialismo. Principalmente no que concerne ao modelo de sociedade. Mas não será mais oportuno discutir os meios que nos podem levar à ruptura com o capitalismo? Por tal percurso, não teremos recursos menos infensos ao doutrinarismo para definir os padrões da sociedade que ansiamos construir como contraponto à inevitável perspectiva de barbárie que esse regime nos anuncia?
Independentemente do que pensem movimentistas, a realidade latino americana está comprovando. Se possibilidades existem, aqui e ali,   de transformações revolucionárias, elas não têm surgido pela via normal da insurgência social. O que tem sido comprovado é não haver caminho mais eficaz para a transformação qualitativa da realidade social, nos tempos atuais, que o da conquista do governo, pela eleição presidencial. A não ser pela heroica Revolução Cubana, há meio século, nenhum outro processo de luta armada resultou em conquistas consolidadas, no continente. Pelo contrário, Na América Central, onde mais eles se concretizaram, quando não desapareceram, se transformaram em mantenedores da ordem vigente. Na Colômbia, que serviria de exceção, se é verdade que as FARCs e o ELN não perderam controle de amplas áreas do território, também não é menos verdade que há impasse insuperável nas atuais condições de confronto.  E a saída possível se afirma a cada dia pela inserção organizada no quadro político institucional. Estaria aí, talvez, a alternativa do poder popular a uma crescente acomodação social à direita, como comprovam as pesquisas pró-Uribe, a despeito de tudo de sujo que seu passado consagra.
Ou seja; é pela via institucional; pelas campanhas presidenciais, com posteriores eleições para Assembléias Constituintes encaminhadas pelos presidentes eleitos, que mudanças qualitativas vêm se afirmando na Venezuela, na Bolívia e no Equador.
A despeito dessa realidade incontestável, está aí uma heresia para movimentistas e doutrinaristas de todos os matizes. Uma heresia para os que, na organização das iniciativas de mobilização social, ou eventos de amplitude multinacional, como o Forum Social Mundial, permanecem inflexíveis na censura à participação explícita no jogo institucional, mesmo, ou principalmente, quando conduzida por partidos políticos que se pautam pelo objetivo estratégico do socialismo.
Vamos, então, ao grão, no debate, para tentar chegar a acordos mínimo.
É preliminar incontestável que, por si só, as condições objetivas para a ruptura com a ordem vigente não produzem revolução. Às condições objetivas favoráveis, é fundamental acrescentar o papel subjetivo do agente transformador; do sujeito revolucionário. Porque, e é bom não cessar de repetir, como corretamente prenunciou Marx, se é verdade que os homens não desenham seus passos futuros a despeito das circunstâncias da realidade em que vivem, também não é menos verdade que, mesmo que a realidade lhes seja inteiramente propícia, são eles, esses homens, e não um determinismo histórico mecanicista, quem pode produzir a ruptura capaz de os transportar da ordem vigente a uma ordem social superior.
Sujeito Revolucionário... De quem falamos quando nos referimos a Sujeito Revolucionário? O que é o proletariado do capitalismo resultante da grande revolução tecnológica do século XX, no qual a acumulação especulativa se impôs à produtiva? Certamente não estamos falando do operário da linha de produção industrial exclusivamente. Em função de tudo o que se destruiu, e se criou, no cenário dessa revolução tecnológica implantada sob a égide do capital financeiro, e de todo o espectro de contra-valores que ele carrega, estamos tratando de algo muito mais difuso.
Estamos falando de profissionais liberais, trabalhadores autônomos, informais, passando obrigatoriamente, e isto é fundamental, por uma parte significativa das Forças Armadas. Sim, parte significativa das Forças Armadas, para se contrapor ao setor tradicionalmente vinculado às concepções de que defender a ordem é defender a estrutura da sociedade burguesa.
E aí está o busílis. Como aglutinar esse conjunto disperso de segmentos interessados num mesmo objetivo, mas muito distantes no quotidiano da vida?
Ora, se formos realistas para compreender que lutas setorizadas, aqui e ali, são como jangadas isoladas em meio ao oceano, sem nenhuma intercomunicação permanente, podemos ter certeza de que daí nunca saíra uma esquadra de combate organizado. Não será, portanto, apenas dos chamados movimentos - independentemente de suas capacidades mobilizantes e organizativas - que surgirá o polo dirigente no momento decisivo. Principalmente no caso brasileiro, no qual o que preenche de forma principal tais qualidades é um movimento de luta agrária, é o MST, de alcance eficaz diminuto nos decisivos centros urbanos, onde se concentra mais de 80% da nossa população ativa.
Se possibilidade existe, portanto, ela está no único momento em que os meios alienantes de opressão ideológica não estão exclusivamente controlados pelo grande capital. Ela está na campanha eleitoral, principalmente na disputa da Presidência da República, e muito também na dos candidatos a cargos parlamentares.
Vale aqui, para fazer a citação sempre exigida pelos que se movem exclusiva e estaticamente pela doutrina, recorrer a Engels, num dos seus textos, para fácil constatação: a Introdução à edição de 1895 de "As lutas de classe na França de 1848 a 1850", do velho Marx.
Tratava-se, então, de um embate político com os que só viam o caminhos da insurreição armada, da luta nas barricadas, como caminho para por fim ao domínio da burguesia, outrora aliada, então inimiga ferrenha do proletariado ascendente.
(...)Graças ao discernimento com que os operários alemães utilizaram o sufrágio universal introduzido em 1866, o crescimento do partido (socialdemocrata) surge abertamente (...). Em 1871, 102 mil (...) Em 1890, 1,787 milhão, mais de um quarto do total de votos expressos.
Para Engels, os operários haviam operado com competência o preconizado em programa dos marxistas franceses, transformando o direito de voto, "de um instrumento de logro, que tinha sido até aqui, em instrumento de emancipação". E a razão do êxito da participação no sufrágio universal vem logo a seguir:
"Na agitação da campanha eleitoral, forneceu-nos um meio ímpar de entrarmos em contato com as massas populares no que elas ainda se encontram distantes de nós. E de obrigar todos os partidos a defender perante todo o povo as suas concepções e ações face aos nossos ataques".
Engels vai mais longe. Mostra a importância das bancadas parlamentares, ao afirmar que para além do que a campanha eleitoral propicia, a eleição de deputados
"abriu aos nossos representantes uma tribuna no Reichstag, de onde podiam se dirigir-se aos seus adversários no Parlamento, e às massas fora dele, com uma liberdade e autoridade totalmente distintas das que se tem na imprensa".
Se ainda não for suficiente, podemos recorrer a Gramsci, no artigo 'Os Revolucionários e as Eleições", no 'Ordine Nuovo', de 15 de novembro de 1919:
"(...) a revolução encontra as grandes massas populares italianas ainda informes, ainda pulverizadas num fervilhar animalesco de indivíduos sem disciplina e sem cultura, que obedecem apenas aos estímulos do ventre e das paixões bárbaras. Precisamente por isso é que os revolucionários conscientes aceitaram a luta eleitoral: para criar uma forma primordial nesta multidão; para vinculá-la à ação do Partido Socialista, para dar um sentido e um vislumbre de consciência política (...)
É possível produzir formulações com maior atualidade para a conjuntura que vivemos?
É claro. Haverá sempre alguém lembrando que uma coisa é o crescimento do partido, utilizando as contradições dos instrumentos institucionais burgueses para combater a própria burguesia. Outra são os exemplos históricos de rendição inevitável após a chegada ao poder, quando a traição programática e a submissão aos interesses da burguesia jogam os programas prometidos no lixo da história. Não só pelo exemplo da própria socialdemocracia européia (nunca é demais lembrar que foi um governo socialdemocrata, eleito, quem entregou Rosa de Luxemburgo e Karl Liebnitch aos seus assassinos), e que terminou, no passado recente, fazendo o jogo sujo da implantação da restauração neoliberal que a direita não tinha condições de, só por ela, concretizar. Há também o próprio contexto brasileiro, em que o PT, socialista no programa, se transformou, sob a égide do governo Lula, num bastião mais eficaz de defesa do grande capital do que o havia sido o antecessor mandarinato tucano-pefelista de Fernando Henrique Cardoso.
Mas para o bem ou para o mal, nesse ponto é que devemos introduzir o poder do subjetivo, atuando sobre a realidade objetiva - conceito de que a história não se faz por ela,  mas pelos homens, quando traçam seu destino. Se, conquistado o governo através da Presidência da República, o representante da esquerda que aí chegar, após a campanha que nunca  deixará de ser renhida, terá chegado num clima de mobilização social intensa. E tem dois caminhos.
Quando chega proclamando que "a partir da eleição sou presidente de todos", estará cometendo traição inominável contra a cidadania que o elegeu. Porque ninguém pode ser, a priori, presidente de todos. Quando assim se coloca, certamente já se entregou aos de cima; aos poderosos; aos que terá derrotado no processo eleitoral, mas contra os quais não quer se indispor - por covardia ou por opção ideológica, oculta durante a campanha e diante do programa que pretendeu promover.
Foi o caso de Lula. Sua primeira entrevista coletiva após a confirmação da vitória eleitoral foi ao Jornal Nacional da Globo. Sentadinho na cadeira suplementar, e sob comando dos apresentadores, com todo o respeito aos patrocinadores do intervalo comercia; já estava ali o simbolismo, confirmado ao longo do mandato, da transformação do líder rebelde em capataz do patronato. Diferente, e muito, de um  saudoso burguês moderado, Tancredo Neves, que nunca se pretendeu socialista nem rebelde, mas que, eleito pelo voto indireto de colégio eleitoral ilegítimo do fim da ditadura, teve a ousadia de se apresentar ao conjunto de jornalistas - nacionais e estrangeiros - a partir da mesa do Congresso Nacional. Para, entre outras propostas, declarar que "não pagaria a dívida externa com o sangue do povo brasileiro". E criticar a ditadura de Pinochet.
Mas, se Lula se dobrou, mostrando que o medo se suplantara à esperança, essa não foi a opção de Chavez, Rafael Correa ou Evo Morales, chegados à Presidência pela mesma via institucional. Estes nunca se escafederam da responsabilidade que sua eleição contra a corrente lhes colocou sobre os ombros. Nunca se anunciaram presidentes de todos, porque sempre se afirmaram eleitos para mudar; e mudar em profundidade, em favor do povo trabalhador. Promovendo processos constitucionais em confronto com as então classes dominantes, e não se apequenando diante da direita troglodita.
Assim já havia sido com Allende, no Chile, cuja experiência, a ser vivida nos tempos de hoje, teria certamente se desenrolado sem o enlace trágico daquele período em que a guerra fria dava legalidade ilegítima ao aporte material e militar escandaloso da diplomacia Nixon-Kissinger aos golpistas da América Latina.
E assim já havia sido, guardadas as proporções, com João Goulart, no Brasil - personagem referencial de dois episódios que, levados às conseqüências mais concretas, teriam talvez traçado um outro enredo para a segunda metade do século XX na América Latina. Dois episódios em que o papel do líder foi essencial para o desdobramento dos fatos. Vamos a eles.
1961. Janio renuncia após oito meses de governo. Renúncia bizarra, inesperada, permitindo a interpretação de ter sido manobra para uma espécie de retorno triunfal com poderes autoritários reforçados. Não encontrou respaldo nem na direita que o elegera. Direita que passou a ter como objetivo prioritário a consolidação do veto à posse do vice-presidente eleito (o vice-presidente era, então, votado em cédula própria. Jango era vice na chapa de Lott, mas derrotou o vice de Janio). Contra ele, todas as cargas preconceituosas e reacionárias possíveis. Estava na China, onde encontrara Mao Tse Tung,  no exato momento da renúncia, e havia sido Ministro do Trabalho do governo reformista e nacionalista de Getulio Vargas. No clima de confronto ideológico reinante na época, acumulava as credenciais suficientes para, a despeito de ser um estancieiro gaucho, ser considerado como um aliado dos comunistas.
Os três ministros militares - Marinha, Exército e Aeronáutica - não hesitaram em vetá-lo. E tudo parecia marchar para o controle da junta que tinha ampla maioria na composição de comandos e postos-chave, quando um governador de Estado, sozinho, se rebelou, instalando a Cadeia da Legalidade. Com o controle sobre a Brigada Militar, o governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, se levanta e anuncia um foco de resistência armada contra o golpe em marcha. O suspense ficou por conta do que seria a reação do comandante do III Exército - o mais bem equipado, por conta da paranóia contra a limítrofe Argentina -, general Machado Lopes, certamente alguém da confiança do então ministro Odílio Denis. O suspense durou pouco. Em função da imediata adesão da grande maioria do povo gaúcho, para cuja mobilização o PCB desempenhou papel fundamental, as dissensões começaram a surgir. Comandos de unidades do interior começaram a se manifestar pela manutenção da legalidade e, muito rapidamente , o III Exército  em bloco estava ao lado do governador.
Jango voltou ao país, assumiu sob regime parlamentarista que, pouco depois, derrubava em plebiscito no qual, por larguíssima maioria, o povo restabelecia o regime presidencialista.
1964. A direita reacionária, corrupta e entreguista, que havia falhado no objetivo golpista de 61, não recolhera suas baterias. Pelo contrário. Através de "institutos" amplamente financiados pelo Departamento de Estado, e coordenados internamente pelo embaixador dos EUA Lincoln Gordon, mobilizava todos os meios para impedir as chamadas Reformas de Base que o governo Jango tentava implantar. Não podia aceitar a legislação que controlava fluxos de capital, taxava remessa de lucros das multinacionais e avançava na desapropriação de terras para que a implantação de uma reforma agrária se efetivasse. Com o tonitruante Carlos Lacerda, no governo do Rio, o banqueiro Magalhães Pinto, no governo de Minas Gerais e o  corrupto-mór Ademar de Barros, no governo de São Paulo, a direita orgânica, ademais, controlava os principais meios de comunicação e tinha o apoio da Igreja Católica para a mobilização em torno do "Deus, Pátria e Família".
Mas, quanto ao esquema militar, a direita não tinha postos de relevância nas áreas decisivas. Não tinha comandos nem influência política, a não ser nos Clubes onde se congregavam essencialmente oficiais da reserva.
No entanto, a partir de movimentação de uma coluna sem nenhum poder de fogo, partindo de Belo Horizonte, onde eram mínimos os efetivos do Exército, o governo Jango caiu em dois dias, praticamente sem esboçar resistência.
Como se explica isso? Por que, em setembro de 1961, com o controle total do aparelho de Estado, civil e militar, a direita não consegue se impor e, em abril de 64, menos de três anos depois, despojada de todo equipamento militar, consegue dar o golpe com tanta rapidez?
A resposta pode estar no parágrafo de abertura. Em 61, a opção decisiva de Brizola, com os meios que ativou, inclusive armando a população civil do Estado, comprovou o papel fundamental da liderança na criação de condições objetivas para a organização e mobilização dos movimentos sociais progressistas em torno do objetivo comum: defesa da legalidade, garantindo a posse de Jango.
Em 64, dá-se o oposto. As condições materiais objetivas eram inteiramente favoráveis. A CGT decreta greve geral tão logo a movimentação golpista, ridícula em potencial de combate, a partir de Minas Gerais, se confirma. Movimentação golpista que deixara perplexo os próprios chefes da conspiração, o general Castelo Branco à frente, surpreendidos pela iniciativa do general Mourão. Movimentação golpista ridícula, que seria facilmente barrada caso o presidente João Goulart não tivesse decidido pelo "não-derramamento de sangue". O presidente João Goulart, conscientemente, desmobilizou a resistência militar legal, principalmente a do III Exército, no Rio Grande do Sul, que ainda pretendia se movimentar mesmo depois do presidente do Congresso, Moura Andrade, haver decretado vaga a cadeira presidencial, a despeito da contestação da bancada de parlamentares reformistas, pois Jango ainda estava em território nacional.
Resumindo: em 61, a direita tinha muito mais condições para a concretização do golpe e não logrou implantá-lo. Em 64, a vitória caiu-lhe no colo quando as condições objetivas lhe eram muito mais desfavoráveis.
A diferença entre as duas realidades é clara. Em 61, Brizola assumiu resistir a qualquer preço. Colocou a subjetividade na organização das condições objetivas latentes em parte significativa da sociedade civil. Em 64, diante da necessidade de decisão que poderia levar a uma ruptura conflituosa, mas previsível, o presidente Goulart necessitava saltar uma barreira que lhe pareceu intransponível. A da possibilidade da guerra civil, em condições extremamente mais favoráveis das que, para seu mentor político Getúlio Vargas, haviam sido necessárias para liderar a Revolução de 30.
Houvesse Jango resistido, mesmo que a história não se faça por "se"s, e possivelmente não teríamos vivido a América Latina das ditaduras que se estabeleceram na sequência do golpe no Brasil. Mas, importante registrar. Jango não pode ser crucificado pelos que coincidam com a interpretação dos fatos como acima relatados. Para um estancieiro gaucho, ele já havia ido muito mais longe do que sua formação o permitiria. Se Vargas avançou em 30, sem hesitar, tratava-se ali de uma necessidade da burguesia urbana, ansiando pela industrialização do país. Se Jango avançasse, numa América Latina recém encantada com a Revolução Cubana, o desdobramento não se daria obrigatoriamente dentro dos mesmos limites. Em benefício de Jango, na comparação, é bom não esquecer a traição ideológica do líder sindicalista, operário metalúrgico que cresceu na política defendendo um programa socialista para um partido nascido "contra os patrões" e que chegou à presidência para se transformar no mais eficaz dos protetores dos interesses desses patrões.
Essa, sim, foi a tragédia maior. Porque quando o PT chega ao governo, isso resulta de uma trajetória de duas décadas de luta pelo socialismo. Quando Lula é eleito, o povo escolhera alguém que deveria romper com o modelo vigente, conforme estava gravado no documento final do último congresso que esse PT realizou antes de alcançar o Palácio.
E nos três casos - Brizola, de 61; Jango, de 64 e Lula, de 2002 - o, que se pode constatar é incontestável. Os rumos escolhidos pelos líderes em cada ocasião foram determinantes para o desdobramento histórico, independentemente do que lhes propiciava a realidade objetiva em que operavam.
Para avançar, para não arriscar e para trair.

*Milton Temer é jornalista