quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os caminhos da direita:

Trocar seis por meia dúzia


A cada dia, a cada acontecimento, ou melhor, a cada ação política a direita vai mostrando concretamente a sua força. Durante algum tempo, após os episódios dos golpes militares e, por conseguinte, as torturas, a direita manteve-se à espreita na política. Revestida por um verniz típico da sociedade pequeno-burguesa, ela se reorganizou e tentou adotar um discurso light para uma volta triunfal. Mas que reorganização a direita está pondo em prática? Quais são seus novos interesses? São novos ou são os mesmos?

A burguesia ascendeu quando o renascimento comercial e urbano fixou-se. Logo, a classe social que emergiu na Europa, no século XI, fora a burguesia que dedicava-se às atividades financeiras, e acima de tudo, ao comércio. O que pouca gente sabe é que os burgueses eram moradores dos burgos, ou seja, cidades revestidas por muros, e ainda, que eram preteridos pelos nobres e pelos artesãos. A partir desta organização, mesmo sem saber, a burguesia seria a mãe do capitalismo, responsável pela transformação do mundo nesta grande fazenda de poucos donos e muitos empregados-escravos.

Pois bem, para adentrar nos meandros da política estimulando o comércio, a burguesia também precisou se reinventar. Ou, ainda, mascarar-se de popular. Afastada do centro do poder, pela nobreza, começou a apoiar revoluções onde o proletariado surgia. Muitas revoluções, principalmente a americana, tiveram o apoio da burguesia, para a perpetuação do comércio e a fixação da burguesia na política.

Séculos mais tarde, viu-se uma inversão nos papéis. Aquela classe social alta que ficava à margem da discussão política, agora tornava-se a principal responsável pela organização da direita. A burguesia, com o lucro do comércio, leia-se exploração do proletariado, pôde financiar governos e golpes, que puseram fim às monarquias e introduziam repúblicas que atuavam sob a égide do retorno financeiro. Patrocinar a troca da monarquia pela democracia republicana fora a ação mais lucrativa da dominação da direita.

Para tanto, os séculos se passaram e a direita se perdeu no afã do lucro. Instituíram governos que foram apedrejados pela organização popular, dividiram o mundo entre ricos e pobres e viram as enormes periferias criadas. Insuflaram o capitalismo com o liberalismo, e depois o neoliberalismo, e viram a China, um país comunista, ser a maior economia do mundo capitalista. Empreenderam tanto a lógica do lucro, da economia globalizada, dos amplos avanços tecnológicos, das commodities, e se esqueceram que viviam da especulação e quebraram. Aliás, tentaram quebrar o mundo.

Ao arquitetarem a sua glória na política, esqueceram de combinar com a massa e tiveram mais uma vez que se reinventar. Primeiro disseram que o estigma de direita e esquerda não existia mais, falaram que todos nós éramos liberais, mas não colou. Depois tentaram empurrar, via “mídia abaixo”, que a crise era mundial, e viram os países do BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), com governos seja na base, seja na atualidade, de centro-esquerda, entrarem e saírem da tal crise com muita segurança. Aliás, países que formam um bloco que será o maior do planeta dentro de alguns anos. Sem conseguir o apoio necessário para se reestruturar, a direita dispôs dois exemplos mais duros.

Para os latinoamericanos, mostrou toda a sua crueldade ao tomar um governo democrático por um golpe militar em Honduras. E, para o mundo, colocou na agenda da mídia a famosa gripe do porco. De um lado mostraram-se vivos contra quaisquer insurgências populares, e de outro lado comprovaram o apoio do seu principal partido, a mídia, que propagou a gripe como novo temor mundial. Ou seja, a pauta não é mais a crise, mas a gripe. Esquecem de dizer que meio milhão de pessoas morrem no Brasil vítima da gripe “comum”. E quantas morrem de dengue? De fome? Até hoje morrem do impaludismo.

Logo, com um discurso convicto e se reabastecendo financeiramente a direita se prepara para recuperar o espaço que perderam para o seu próprio ego. E como estão se reorganizando? Proibindo os bailes funk, como se todo funkeiro fosse marginal. Proibindo com veemência os camelôs e deixando livres grandes lojas sonegadoras de impostos. Cercando as favelas com muros. Construindo presídios em detrimento das escolas. Tratando a maconha como uma droga destruídora de lares, mas permitindo “padres-cantores”, que destilam o seu bálsamo, ou melhor, a sua onda da bitolação. Tantos são os novos caminhos de reagrupamento da direita… Entretanto, um vem chamando mais a atenção, um “novo-velho” caminho é a nova base da direita.

Com o valoroso apoio da mídia, a direita que teve que engolir um torneiro mecânico e um negro presidente. E a tática escolhida é atacar onde estes triunfam. Onde o povo tem mais acesso e possibilidade de transformação, na política. Agora, mais do que nunca, todo político é corrupto. Existe uma grande campanha para a população definitivamente achar que não precisa do político para nada. E assim sendo, a lacuna para a grande festa da direita está aberta. Portanto, o grande caminho da direita é a descaracterização total da classe política para agir novamente de acordo com a sua conveniência. Mas, se não bastasse a campanha de descaracterização da classe política, a direita já dá o seu toque para o grandioso retorno. Imprime na sociedade um modelo do novo político. Oriundo dos partidos comprometidos com a direita, da sociedade organizada, o novo político é centrado, sério, coeso e altamente distante das camadas menos abastadas. O novo político é técnico, frio e, acima de tudo, sem qualquer formação política. Ele só fala por números. Ele é cercado por um grupo de burgueses. Ou seja, ele é o produto da necessidade da direita. E como ele fica popular? Com a necessidade da população em moralizar a política.

Tudo é milimetricamente controlado e orquestrado, nada foge à sua alçada. Tudo deve ser controlado e observado. Números, resultados, a política é norteada como uma empresa. As campanhas são totalmente profissionalizadas. Ele deve estar afastado dos políticos de carreira. Aliás, político de carreira para eles é um grande temor. São tratados como vagabundos, invariavelmente. O novo político que nasce do berço da burguesia é tão velho quando o surgimento da própria burguesia. Este é um modelo obsoleto e totalmente reacionário. Este modelo de político tenta voltar à cena em vários países do mundo e não é possível que não percebamos uma manobra tão velha como esta.

Por fim, sabemos dos erros que muitos políticos cometem. Muitos se perpetuam anos a fio com a corrupção desenfreada. Outros ficam pelo caminho. Porém, sabemos que o país vive uma crise de identidade da classe política muito mais pela necessidade de lucro da direita que da melhoria do povo. Devemos acreditar em políticos sérios, íntegros, honestos? Não, isso é um comportamento comum de qualquer ser humano. A necessidade da política é para a transformação da realidade de um povo sofrido, retirante, e muitas vezes, “criminalizado”. E somente um político pautado nesta transformação poderá mudar qualquer realidade. Mudar não é trocar, mudar é transformar. E colocar um novo nome viciado pela direita, arrebatado pelo novo espectro político “buguês-midiático”, significa atraso e não mudança.

O povo deve, além de observar a história do político, quem o acompanha. Quem são seus pares? O que eles já fizeram pela melhoria dos menos favorecidos? De onde vieram? Quais são seus interesses na política? E não me venham com apoios a orfanatos e outras ações se o povo continua à margem do poder decisório. O verdadeiro político tem na sua base a representação popular, as vozes dos guetos e os sons mais ouvidos de seus pares são sonoros “nãos”, capazes de tirar-lhe qualquer tentação déspota que as urnas podem dar. O verdadeiro político é tomado pela indignação que ferve o sangue das suas veias. O verdadeiro político é de carne e osso. Adotar o pensamento da burguesia de que os políticos devem ser somente técnicos é mais uma vez compactuar com a transição da monarquia à república, é seguir os passos preconceituosos e distantes dos mais abastados e, acima de tudo, trocar políticos corruptos por políticos técnicos (tecnocratas) é dar novo rótulo às mesmas práticas, ou melhor, trocar seis por meia dúzia. Pois a finalidade será a mesma, manter o caminho do mundo à direita.

(*) Leonardo Gomes é jornalista e publicitário.

‘Igreja é aliada da oligarquia para dominar o povo’

‘Igreja é aliada da oligarquia para dominar o povo’, afirma Evo Morales

O presidente boliviano Evo Morales disse nesse final de semana que a Igreja é "aliada da oligarquia para dominar o povo" e que, "nos últimos tempos, se juntaram nobreza, clero e oligarquia" para dominar e minar "o poder e a força do povo".

(A reportagem é da Agência Gaudium Press, 11-08-2009.)

Foi assim que o mandatário boliviano reagiu às declarações do secretário-geral da Conferência Episcopal da Bolívia, monsenhor Jesús Juárez, que na quarta-feira passada afirmou que ao imitar "a democracia à la Venezuela... vamos pelo mau caminho e vamos nos encontrar de frente a um muro que poderá trazer mais confrontação que avanços". O religioso se referia à importância da reflexão interna. "Bolívia ter que buscar seus próprios caminhos de soberania, unidade e democracia", havia dito na ocasião o bispo.

Desde que assumiu o governo em 2006, Evo Morales em diversas ocasiões atacou, criticou, questionou a Igreja Católica, que a seu ver representa uma instituição que o incomoda e incomoda a seu governo porque teria sido aliada da coroa espanhola no processo de colonização e "submissão" dos povos originários da América.

Para Morales, a Igreja Católica está incursionando em terrenos proibidos quando opina e se pronuncia sobre a situação política no país, a polarização e os problemas mais graves ainda não resolvidos: pobreza, corrupção ou violência, entre outros. "Rezar ou fazer política", referiu-se Morales certa vez à Igreja.

As declarações de Morales sobre o agir da Igreja Católica são inúmeras e passam pela diversidade de temas importantes e de conjuntura que preocupam aos bolivianos. Não somente políticos, mas também temas educacionais e fiscais, que vieram à tona na primeira semana de agosto, inclusive na sua sugestão de que a Igreja "deveria desaparecer", e que "a Igreja apoia ditaduras militares".

"Quando não podem nos dominar com orações, vêm com o fuzil", disse Morales recentemente, ao referir-se à crítica situação política que vive Honduras, país que, segundo ele, "teve um arcebispo apoiando uma ditadura". "Defender os latifundiários, apoiar ditaduras ou estar no golpe de Estado não é orar nem trabalhar por justiça e igualdade".

Para o presidente Boliviano, a Igreja está atuando contra as "transformações políticas" que impulsionam o seu governo e "reflete" que "outro mundo é possível,... outra fé, outra religião, outra Igreja também é possível irmãos e irmãs". Segundo os dados mais recentes, a Bolívia é um país com quase 90% de católicos declarados."

Link da matéria:

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=24741

Ruína de Yeda e omissão da imprensa

Ruína de Yeda e omissão da imprensa





Escrito por Luiz Antonio Magalhães

Os leitores dos jornalões editados em São Paulo e Rio de Janeiro já conhecem com muitos detalhes cada falcatrua cometida no Senado Federal. Até os pecadilhos dos parlamentares, coisas consideraras (por eles próprios) "menores", como ceder passagens aéreas para familiares, vão logo parar nas manchetes – o último desses casos envolve o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE). Se alguém perguntar aos leitores o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, porém, é provável que a resposta seja evasiva. De fato, a gestão Yeda Crusius (PSDB) à frente do governo gaúcho é uma tragédia de graves proporções e não está merecendo dos grandes jornais uma cobertura à altura do desastre – político e gerencial – em curso nos pampas.

É bem verdade que nos últimos dias, especialmente depois que o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF-RS) protocolou, em 5 de agosto, uma ação de improbidade administrativa na Justiça Federal de Santa Maria contra a governadora e outros oito réus, os jornalões do Rio e São Paulo decidiram dar uma colher de chá e publicaram reportagens sobre o assunto. Tudo muito insuficiente.

Sim, insuficiente, porque o descalabro começou antes mesmo de Yeda Crusius botar os pés no Palácio Piratini, em janeiro de 2007. Durante a campanha, a então candidata se indispôs com seu vice, Paulo Afonso Feijó (DEM), porque ele defendia as privatizações como saída para resolver os problemas financeiros do estado. Desautorizado, Feijó permaneceu na chapa, foi eleito e depois rompeu politicamente com Yeda. Ainda durante a campanha, o marqueteiro Chico Santa Rita abandonou o comando da estratégia de marketing acusando a governadora de deixar de pagar os salários da sua equipe. Em seguida, já eleita, mas antes de tomar posse, Yeda pediu ao então governador Germano Rigotto (PMDB) que enviasse à Assembléia Legislativa um projeto para cortar despesas e aumentar o ICMS. Tal projeto foi derrubado em 29 de dezembro de 2006, em uma votação que teve como articulador político o vice-governador. Só que contra, e não a favor do projeto de Yeda...

Consequências eleitorais

A crise, permanente, se arrasta desde a campanha eleitoral de 2006. De lá para cá, Yeda jamais conseguiu momentos de tranqüilidade política no Piratini. A grande imprensa do Sudeste vem noticiando tudo com muita discrição e sem contextualizar o problema. Aliás, um problemão. O ruinoso governo de Yeda de certa forma quebra a espinha dorsal do discurso tucano da "excelência da gestão", que deveria ser o diferencial da candidatura presidencial do partido em 2010. Pior ainda, no campo político a governadora conseguiu se isolar de tal maneira que DEM e PMDB, tradicionais aliados do PSDB no estado, já pularam da canoa de Yeda. Se ela insistir em se candidatar à reeleição, qual será o palanque do presidenciável tucano em terras gaúchas? José Serra (ou Aécio Neves) estarão ao lado de Yeda, única governadora brasileira que tem taxa de rejeição superior à de aprovação? Difícil, a julgar pela defesa tímida que os próceres tucanos vêm fazendo do governo da correligionária gaúcha. E alguém leu análises sobre isto nos jornalões?

Boa parte das matérias, aliás, conseguiram inverter a questão, atribuindo ao PSOL uma importância que nem mesmo a deputada federal Luciana Genro (RS) poderia almejar. Sim, porque o desastre político do governo Yeda tem como protagonista a própria governadora, que em um raro espetáculo de inabilidade política conseguiu perder apoio de aliados tidos como muito fiéis, a exemplo do DEM e do PMDB. Definitivamente, não foram as denúncias da filha do ministro Tarso Genro que colocaram Yeda nas cordas, foi a própria governadora que preferiu se postar no corner. E isto também ficou de fora da cobertura dos jornalões sobre o caso.

Cobertura descontextualizada

A falta de contextualização vai além dos aspectos político-partidários. O Rio Grande do Sul vive uma crise estrutural há muito tempo, com problemas especialmente nas finanças do estado e na sua economia. O PIB gaúcho, que representava em 2008 quase 7% do nacional, permanece neste patamar há pelo menos 10 anos. Ao contrário da região Nordeste, altamente beneficiada pelo crescimento dos últimos anos, a economia do Rio Grande vive uma situação que já antes da crise econômica mundial beirava à estagnação.

A situação econômica do Estado deveria necessariamente aparecer nas matérias e reportagem sobre a crise do governo Yeda porque é parte explicativa dos problemas enfrentados pela governadora. De fato, a tentativa, talvez um tanto açodada, de zerar o déficit do Rio Grande em quatro anos foi uma das causas de boa parte dos problemas da governadora. Em casa que falta pão, como se sabe, todos gritam e ninguém tem razão.

Com a cobertura fragmentada e direcionada para os momentos mais espetaculares – as denúncias, o anúncio do processo, os rompimentos com os aliados –, a imprensa do eixo Rio-São Paulo acaba prestando um desserviço aos seus leitores, que ficam com a impressão de que Yeda Crusius é apenas uma vítima do radicalismo do PSOL ou da fúria do Ministério Público. Há uma ótima história para ser contada por trás de um governo ruinoso, mas a mídia parece não querer contar. Por preguiça ou por motivos obscuros. Em ambos os casos, perde o leitor.

Luiz Antonio Magalhães é jornalista e Editor Executivo do Observatório da Imprensa, onde este texto foi originalmente publicado.

Contato: laccm@terra.com.br

Entrevista com Boaventura Santos na NovaE...


Foto: Wilson Dias/ABr

Bruno Moreno

Passados cinco séculos do início da colonização portuguesa no Brasil, o filho de um cozinheiro português quer ajudar a resolver um dos maiores problemas criados pelos próprios ibéricos: a escravatura e as perversas formas de dominação de raça e classes após a Lei Áurea, que ficou devendo muito aos negros – aceitou a liberdade física, mas negou a econômica e a social, dentre tantas outras. Quem está se propondo a ajudar na questão é o sociólogo e escritor Boaventura de Sousa Santos, que frequentemente vem ao país e até se intitula um “brasileiro adotado”.

Ferrenho defensor das ecologias de saberes populares, Boaventura esteve em Brasília, em julho, e encontrou com a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, que, juntamente com outros dez ministros, compõe o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Pois é justamente lá, no STF, que está em curso um dos processos mais importantes para os negros no Brasil.

Vale lembrar que outro ministro que compõe o elenco de magistrados é o presidente do tribunal, Gilmar Mendes. Mas Gilmar não deve estar muito feliz com a ida de Boaventura em seu plenário. Isso porque o professor português o definiu como "uma figura patética", destacando sua publicidade excessiva na imprensa. "Nos Estados Unidos, o presidente do Tribunal não aparece na mídia como o Gilmar. No máximo, ele vai dar uma palestra em uma universidade, de vez em quando", criticou.

E deverá ser Gilmar que presidirá uma sessão que poderá ter seu resultado influenciado por Boaventura. Desde que, em 2003, o
presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou o decreto 4.847, em 25 de setembro, a vida dos quilombolas poderia ter ganhado outros vieses, com a agilização da demarcação de suas terras. Entretanto, o então PFL, atual Democratas, tradicionalmente ligado à bancada ruralista, não gostou da proposta, e resolveu entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, contra o projeto.

Aí entra o professor Boaventura. Ele se dispôs, um pouco incomodado, a ir ao STF dar uma aula sobre a história da colonização portuguesa no Brasil, seus efeitos e injustiças históricos, para sensibilizar os ministros para a causa. Entretanto, não entende bem porque isso é necessário. “Falei com ela (Cármem Lúcia) que posso vir, mas há muito material produzido no Brasil. É só ler, é só querer ler”, questionou o professor, em palestra realizada em Belo Horizonte, dia 4 de agosto, em Belo Horizonte, a convite do Sinpro Minas.

E não é à toa que Boaventura se arrisca nessa intentona. Para ele, que lutou contra o imperialismo português que persistiu até 1975 em colônias africanas e no Timor Leste, a maior herança do colonialismo é a pífia distribuição fundiária e o racismo. Olhe um pouco à sua volta e verá que o professor tem razão.

A data da audiência pública em que Boaventura irá participar no STF ainda não está marcada. Mas parte do recado já foi dado. Quem sabe, agora, os brasileiros não estudam um pouco mais o tema em vez de rejeitá-lo?

Em entrevista exclusiva à NovaE, Boaventura detalhou seus argumentos, e também falou do governo Lula, de suas políticas ambiental e social, do agronegócio e da crise econômica mundial do capitalismo. Além disso, afirmou que o Brasil está pronto para ter uma mulher na presidência. Entretanto, ele prefere o ministro da Justiça, Tarso Genro. Confira abaixo.

Qual é a participação do senhor na defesa da demarcação das terras dos quilombolas?

Como trabalho bastante com os advogados populares, que trabalham com os quilombolas, tive notícia de que eles iriam pedir à ministra Carmem Lúcia uma Audiência Pública em face daquela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que foi impretada pelo antigo PFL, os Demos.

Essa ADI visa fundamentalmente considerar inconstitucional muitos dos processos de regulamentação dos territórios de remanescentes de quilombos – que ultimamente têm sido uma grande transformação, digamos assim, na vida do campo do Brasil devido ao reconhecimento e à organização dos afrodecendentes para reaverem as terras que foram desapropriados, onde viveram muitos anos. Essa é uma luta muito importante, uma vez que sou conhecido e os ministros conhecem as minhas posições.

Eu quis sensibilizar, basicamente, o Supremo Tribunal Federal, para a importância da questão quilombola, sobre a qual existe tanto desconhecimento no Brasil, o que é uma coisa que me surpreende. Uma vez que há muita informação disponível sobre esse movimento, e as razões históricas, fundamentalmente justiça histórica, que está por trás dele. Mas a verdade é que há muita ignorância a respeito disso. A ignorância, no meu entender, pode ser altamente prejudicial ao movimento, e à reivindicação dos quilombolas. Porque pode mudar os critérios dos códigos livrais, que atravessam toda uma parte de direito civil que tem uma concessão privatística da propriedade, e são muito renitentes a reconhecer os direitos históricos sobre a terra. Nesse caso dos remanescentes e também no caso dos indígenas.

Como o senhor vê a questão de um português vir ao Brasil para ter que falar sobre esse tema, já que (a escravidão no Brasil) foi uma criação de Portugal?

É uma pergunta interessante. Obviamente, não me sinto responsável pelo colonialismo. Por contrário, ainda tive a oportunidade de lutar contra o colonialismo, porque ele durou até tão tarde. Desde os anos 1960 lutei contra ainda as colônias que existiam no império e que só se libertaram em 1975. Mas é verdade que a minha ligação a eles e com outras causas que tenho abraçado no Brasil não tem muito a ver com essa responsabilidade, porque não a reconheço.

É fundamentalmente porque eu tenho trabalhado no Brasil. Há muita gente que pensa, nos círculos internacionais, que sou brasileiro. Sou um brasileiro adotado. Fiz aqui meu trabalho de campo, meu doutoramento foi feito numa favela do Rio de Janeiro. E participo da vida social, acadêmica e também política, com os movimentos sociais. Num processo que se intensificou muito depois do Fórum Social Mundial. Para mim, é na decorrência disso que eu me dispus a tomar essa ação e vou fazer mais. Também fui o primeiro signatário de um abaixo assinado em defesa da Reserva Raposa Serra do Sol. Também trabalho bastante com o movimento indígena no Brasil, no Equador e na Bolívia, porque também é um caso de justiça histórica que deve ser resolvido.

Mudando o foco da conversa, o senhor acha que o capitalismo, se conseguir passar bem por esta crise, sairá mais forte ou mais fraco?

É muito difícil responder a essa questão. As crises do capitalismo são sempre multifacetadas porque têm diferentes temporalidades. Esta crise financeira, por exemplo, é de uma temporalidade curta. Ela explodiu em agosto de 2008. Obviamente que essa crise não é de agora. Ela já vem de meados da década de 1980 e depois de 1990. Rússia, Brasil, Indonésia e Tailândia foram vítimas disso. A especificidade desta é que ela aconteceu no coração do sistema. E esta é uma crise de curta duração, que é sinal de outras, provavelmente mais profundas, mas que pode ser resolvida a curto prazo, sem em grandes transformações sistêmicas. Mas há outras crises que são muito mais de longa duração. Essa tem a ver com os limites ambientais e esse tipo de desenvolvimento. Eu penso que essa é a grande crise do capitalismo. Ela vai surgir duma ou doutra forma. É aquela que vejo que vai haver mais dificuldades para sua resolução. Não só porque ela toca nos fundamentos do capitalismo, enquanto nesta crise financeira não estamos a por em causa um certo tipo de capitalismo, o neoliberal, que se propôs desvencilhar do Estado, e que em momentos de crise volta ao útero do Estado.

Temos outra crise mais profunda, que atinge a todos nós, na medida em que ela, como no aquecimento global, como em todas as crises que decorrem dos limites ambientais desse tipo de desenvolvimento, vem de nossos próprios hábitos do cotidiano. São os nossos carros, o nosso conforto, daqueles privilegiados no mundo que têm acesso a esses bens.

Eu penso que o capitalismo vai entrar numa crise civilizacional. E essa vai se manifestar de diversas formas, algumas das quais estamos a ver. É muito difícil de ver qual o tipo de crie. Já muitas vezes foram anunciadas as crises finais de capitalismo, que afinal não foram. A questão ambiental tem tantos prolongamentos. Ao nível da questão social, das pandemias, da fome, da seca, das mudanças climáticas. Eu prevejo que aqui haja uma maior turbulência porque a articulação sistêmica que pode impedir que isso ocorra é muito mais complicada.

Com a crise, o governo Lula isentou os carros do IPI, e também produtos da construção civil, como o chuveiro elétrico. Se houvesse uma mudança de viés de desenvolvimento, haveria um estímulo à produção de aquecedores solares para as residências, por exemplo. Como o senhor vê a questão ambiental no governo Lula? Ele está perdendo a chance de mostrar ao mundo que o Brasil poderia ser uma potência ambiental?

A política ambiental deste governo é um desastre. Isso nota-se pela sucessão dos ministros do Ambiente. Este que está agora (Carlos Minc), também já em dificuldades, e sendo uma pessoa muito mais tolerante para o tipo de desenvolvimento atento na idéia do agronegócio, com todas as suas consequências ambientais. Ele próprio sente dificuldades. Obviamente que a ministra Marina Silva teve muito mais dificuldades. Portanto, eu penso que tem sido realmente um desastre. E isso se intensificou ao longo dos anos.

O governo Lula ficou preso a um desenvolvimentismo que já não é o do século XXI. Por exemplo, poderia ter apostado nas energias renováveis. Ao invés disso, aposta no agrofuel, que não é biofuel. Não tem nada a ver com biologia, com a preservação do meio ambiente, ao contrário. É uma outra cultura de plantação. E entrou dentro da cultura genética dos líderes que neste momento governam o país. Num país com essa dimensão, com esta riqueza e com essa diversidade biológica, que tem uma responsabilidade mundial, eu penso que isso é um desastre.

O que está a passar na Amazônia é de proporções inadmissíveis. Nós estamos a assistir, ao contrário do que se diz, uma destruição da Amazônia, com crimes ambientais a ponto de criar a destruição do encontro das águas. Há realmente uma cultura desenvolvimentista, que no meu entender está a minar toda aquela potencialidade de esperança que o Brasil veio trazer ao mundo, no momento em que resolveu ter uma liderança regional, e eventualmente global, ao lado de Rússia, China e Índia (BRIC). É bem que o sistema se torne policêntrico, é mal se esses países, ao entrar, venham a reproduzir o pior do sistema

Apesar da questão ambiental, Lula está fazendo um bom governo?

É um bom governo porque tem um alto nível de aceitação. Beneficiou-se obviamente do carisma de Lula, que desfez todas aquelas idéias estereotipadas que havia no tempo do Fernando Henrique Cardoso, de que a esquerda é burra, que um metalúrgico não pode governar o país. Ele pôde governar o país, atrás de uma conjunção de razões externas e internas que foram muito favoráveis. Foi muito favorável o desenvolvimento da China.

Ao nível interno houve algumas políticas que tiveram um efeito redistributivo. Não só sistemas de ação afirmativa, obviamente foram criadas formas de acesso à universidade pública, mas principalmente o Bolsa-Família. Foi ele que alimentou o mercado interno que veio acabar por ser uma almofada de proteção contra a crise financeira. Este governo tem coisas muito positivas do ponto de vista social. Soube distribuir uma migalha a populações que estavam muito desprovidas. Mas permitiu que o capital financeiro, sobretudo o capital agrário, tivesse as possibilidade de lucro como nunca tinha tido no passado.

O Brasil está pronto para ter uma mulher na presidência?

Eu penso que a Dilma está obviamente. Não sei se a Dilma é realmente a candidata ideal da esquerda. Se estivesse no Brasil eu teria outros candidatos. Mas é a candidata que vamos ter, aparentemente. É uma incógnita para todos saber em que medida o peso e a aceitação que o presidente Lula tem hoje se pode transferir para o apoio à candidata Dilma. É problemático, é uma grande jogada de grande risco da parte do presidente Lula. Mas acho que seria muito bom para o Brasil ter uma mulher como presidente.

Quem seria o melhor candidato para o senhor?

Obviamente, Tarso Genro.