sábado, 10 de março de 2007

O MITO DO "FASCISMO ISLÂMICO"


Contra todas as evidências, o governo Bush e alguns intelectuais europeus procuram identificar movimentos e governos islâmicos como próximos a Hitler ou Mussolini. Há oportunismo e planos de guerra por trás desta imprecisão

Stefan Durand

“Eles se comportam por grandes concepções, tão grandes quanto dentes cariados. A lei, O poder, A autoridade, O mundo, A rebelião, A fé. Assim, podem fazer misturas grotescas, dualismos sumários, a lei e o rebelde, o poder e o anjo”. Nisso, “eles interrompem o trabalho que consiste em ’formar’ conceitos para articulação fina, ou bem diferenciada, de modo a escapar das grandes noções dualistas”. Foi nesses termos que Gilles Deleuze se expressou em 1977, para denunciar o que chamou o “pensamento nulo” dos “novos filósofos” que, segundo ele, “vivem de cadáveres” [1]. Não é de se espantar que, trinta anos depois, esses “pensadores nulos”, esses grandes praguejadores, cada vez mais “novos”, mas nunca “filósofos”, estejam na vanguarda para propagar na França, com base em “misturas grotescas”, o conceito vazio de “fascismo islâmico”, oposto, em um “dualismo sumário” à “civilização judaica-cristã”.

Poderíamos nos contentar em rir se esse conceito de “fascismo islâmico” não tivesse sido utilizado publicamente pelo presidente George W. Bush, em uma entrevista coletiva em 7 de agosto de 2006, e depois em outros discursos oficiais norte-americanos, nos quais foram agrupados movimentos extraordinariamente diferentes uns dos outros (Al-Qaeda, os Irmãos Muçulmanos, o Hamas e o Hezbollah), transformando esses movimentos "em sucessores do nazismo e do comunismo". A requalificação da “guerra contra o terrorismo” em “guerra contra o fascismo islâmico”, que insere os movimentos fundamentalistas muçulmanos na linha dos totalitarismos do século 20, não foi inocente. Ela visa a legitimar as políticas bélicas, baseando-se novamente nos amálgamas e nos velhos truques sempre eficazes da “política do medo”.

A paternidade do neologismo “islamo-fascismo” foi fortemente reivindicada no hebdomadário de William Kristol, The Weekly Standard, pelo jornalista Stephen Schwartz [2], um ex-trotskista convertido ao neoconsevadorismo. Com o pseudônimo de Suleyman Ahmad Al-Kosovi, Schwartz é autor de um panfleto que denuncia um “lobby wahhabita” tramado nas universidades norte-americanas. Além disso, é colaborador de um site muito controvertido, Front Page Magazine de David Horowitz, admirador dos textos racistas de Oriana Fallaci. Mas Schwartz utilizou o termo pela primeira vez apenas em 2001. Não foi ele, então, quem inventou a expressão, mas o historiador Malise Ruthven, em 1990, no jornal britânico The Independent [3]. No entanto, é incontestável que quem mais popularizou a expressão nos Estados Unidos foi Christopher Hitchens. Jornalista brilhante, outrora muito de esquerda, aderiu à guerra do presidente Bush contra o Iraque. Mas se essa expressão encontrou lugar até num discurso oficial do presidente, provavelmente foi devido ao orientalista Bernard Lewis [4], conselheiro da Casa Branca, estimulado por uma hostilidade sem limites em relação ao islamismo. Aliás, Schwartz considera-se um discípulo de Bernard Lewis.

Uma qualificação instrumental

Se nos basearmos nas definições teóricas tradicionais formuladas pelos mais eminentes especialistas em fascismo, sejam de Hannah Arendt, de Renzo de Felice, de Stanley Payne ou de Robert Paxton, perceberemos que nenhum dos movimentos islâmicos agrupados pelo presidente George W. Bush na expressão “islamo-fascismo” corresponde aos critérios. Não que a religião seja incompatível com o fascismo. Embora Payne considere que, para se desenvolver, o fascismo tenha necessidade de um espaço secular [5], Paxton e outros contestam alegando que isso é válido apenas no caso europeu. Pode muito bem existir um fascismo muçulmano, como um fascismo cristão, um fascismo hindu e um fascismo judaico. Nenhuma religião é impermeável a isso.

Mas os movimentos apontados pela administração Bush não entram de maneira alguma nessa categoria. É verdade que alguns elementos do fascismo tradicional podem se manifestar em movimentos fundamentalistas muçulmanos: a dimensão paramilitar, o sentimento de humilhação e o culto ao chefe carismático (todavia, em certa medida, muito relativo e incomparável aos cultos do Führer ou do Duce). Mas todas as outras dimensões, absolutamente fundamentais, do fascismo, de maneira alguma podem neles ser encontradas.

O Al-Qaeda é um movimento transnacional e, portanto, bem longe do “nacionalismo integral” que caracterizou os fascismos europeus. O fascismo é, por natureza, imperialista e expansionista, enquanto os movimentos islâmicos, como o Hamas e o Hezbollah, por mais contestáveis que possam ser suas orientações religiosas, são movimentos em luta contra ocupações territoriais e se qualificam como anti-imperialistas. A dimensão corporativa, inerente ao fascismo, também não existe em todos esses movimentos. Além disso, nenhum deles é sustentado pelo complexo militar-industrial de seu país. Nenhuma dimensão burocrática aparece, enquanto a burocracia era central nos fascismos europeus.

Sustentar que o islamismo é o sucessor do nazismo e do comunismo constitui uma redução, no mínimo, surpreendente. Dispor de um “Estado sectário” representa uma condição necessária ao exercício de um poder de natureza totalitária. Ora, os grupos alvos estão, na maioria das vezes, à margem do poder de seu país, ou são perseguidos por esse último. Por outro lado, os aspectos ideológicos parecem muito secundários entre os movimentos islâmicos, enquanto Raymond Aron enfatizava “o lugar demente” da ideologia no sistema totalitário que, segundo ele, se baseava em um “primado da ideologia” [6].

Sociedades vivas e anti-autoritárias

O fascismo e o nazismo seduziram milhares de intelectuais entre os mais eminentes de sua geração. O Al-Qaeda não pode se beneficiar de uma sustentação dessa ordem, e sua ideologia, das mais sumárias, lembra mais a dos fenômenos sectários do que a dos regimes totalitários europeus.

O fascismo e o nazismo eram movimentos de massa, baseados em uma politização e aceitação das multidões, enquanto o Al-Qaeda não tem aprovação popular e conseguiu seduzir apenas uma minoria muito reduzida de muçulmanos, apesar de todos os elementos propícios como a crise econômica e a humilhação generalizada. Em cada um dos países árabes e muçulmanos encontram-se latentes, sob ditaduras freqüentemente submissas aos Estados Unidos, sociedades civis extraordinariamente vivas e antitotalitárias. Por outro lado, como escreve Robert Paxton: “O que fundamentalmente nos impede de sucumbir à tentação de classificar de fascistas os movimentos fundamentalistas como Al-Qaida e o Talibã é que não são produtos de uma reação contra as democracias disfuncionais. Sua unidade é mais orgânica do que mecânica, para retomar a célebre distinção de Emile Durkheim [7]. Acima de tudo, esses movimentos não podem “renunciar às instituições livres”, se jamais as tiveram [8]. Poderíamos evocar muitos outros elementos que permitem recusar essa analogia com o totalitarismo: nada de monopólio de informações, nada de darwinismo social, nada de economia dirigida nem de mobilização planejada da indústria, nada de monopólio das armas...

O caso da República Islâmica do Irã certamente é o mais problemático. O presidente Ahmadinejad pode se apoiar em um “Estado sectário”, controla muito estreitamente os meios de comunicação por intermédio de um Ministério da Cultura e da orientação islâmica, e mobiliza sua economia – muito planejada –, assim como seu imponente complexo militar-industrial. No entanto, pode-se falar de islamo-fascismo? De fato, não, tanto que a oposição continua numerosa. O presidente iraniano deve compor com o Majlis (Parlamento), e não precisou de muitos meses para obter a confirmação de alguns ministros para isso. Por outro lado, o líder do Estado iraniano, o “guia supremo”, o aiatolá Khamenei, submeteu as decisões do governo de Ahmadinejad ao aval do Conselho de Discernimento, dirigido por Hachemi Rafsandjani, que é simplesmente o candidato derrotado por Ahmadinejad nas eleições presidenciais.

Ahmadinejad deve também compor com o “reformador” Khatami, que conserva uma popularidade não negligenciável. Tzvi Barel sustenta, no Haaretz, que as severas críticas antiisraelenses do presidente iraniano “na verdade, podem se explicadas pelas tensões ideológicas e pelas relações de força na República Islâmica” [9]. Enfim, Ahmadinejad, o “populista”, tem muita dificuldade para seduzir as elites, e grande parte da sociedade civil iraniana está determinada a lutar contra a dominação dos ultraconservadores.

Os semi-fascismos próximos da Casa Branca

Se o termo genérico “islamo-fascismo” é totalmente incongruente, isso não quer dizer que a impregnação fascista não exista no contexto islâmico. Os mundos árabe e muçulmano têm um número considerável de ditaduras e de regimes autoritários que poderíamos considerar de tendência fascista. Esses regimes são, em sua maioria, fiéis aliados dos Estados Unidos em sua “guerra mundial contra o terrorismo”. Os ditadores uzbeque, cazaque e turcomeno são curiosamente poupados pelas críticas americanas, ainda que o caráter semi-fascista desses regimes seja muito claro. A monarquia saudita está em perfeita harmonia com Washington, quaisquer que sejam seus excessos. O apoio à política externa americana resulta na absolvição de todas as derivas autocráticas e tendências fascistas. Quando o coronel Mouammar Kadhafi, ao celebrar o 37º aniversário de sua chegada ao poder, demandou o assassinato de seus oponentes, muito poucas vozes se manifestaram no Ocidente [10].

O termo “fascista” poderia se justificar no que diz respeito à ditadura do presidente Saddam Hussein, dos baasistas e de seus moukhabarat (serviços secretos). O regime de Saddam Hussein era ultranacionalista, baseava-se no culto excessivo ao chefe, e não distinguia entre as esferas pública e privada; além disso era expansionista. As mesmas características encontram-se, de maneira atenuada, entre os baasistas sírios. Ao fazer uma conferência no Kuwait, em 1987, Edward Said alertou os governos do Golfo: “Ao continuarem a sustentar Saddam Hussein financeiramente, vocês são cúmplices desse fascismo árabe, de que acabarão sendo vítimas”. Somente no dia 2 de agosto de 1990, após a invasão de seu país, foi que os dirigentes do Kuwait compreenderam.

A hipocrisia é ainda mais impressionante se imaginarmos que os “islamo-fascistas” de hoje, principalmente os combatentes afegãos, durante sua luta contra os soviéticos foram qualificados em Washington como os “equivalentes morais” dos fundadores dos Estados Unidos [11]. Os Irmãos Muçulmanos egípcios também têm sido muito generosamente ajudados pelos serviços de informações britânico e norte-americano. E o governo israelense favoreceu os Irmãos Muçulmanos na Palestina (antes do nascimento do Hamas) para conter o poder do Fatah e da Organização da Libertação da Palestina.

Termos que estigmatizam populações

Pode-se e deve-se criticar com virulência alguns movimentos que, no mundo muçulmano, recorreram ao terrorismo e apresentam um aspecto fascista, mas sem no entanto recorrer a termos genéricos e provocadores como “nazislamismo” e “ilsamofascismo”, que estigmatizam populações inteiras ao estabelecer uma relação direta entre sua religião e os partidos extremistas que instrumentalizaram essa religião em nome de objetivos políticos. Recusar conceitos fraudulentos como “islamofascismo” não significa de maneira alguma que se deva proibir de criticar os crimes dos islâmicos e sua visão do mundo. Diversos intelectuais muçulmanos não se privaram disso. O brilhante intelectual paquistanês Eqbal Ahmad comprovou uma coragem excepcional ao defender Salman Rushdie diante de multidões paquistanesas em cólera, e isso no momento em que alguns filósofos franceses posavam de heróis por o terem defendido diante do público profano de Saint-Germain-des-Prés.

Todas essas considerações sobre a definição exata do fascismo simplesmente têm pouca importância do ponto de vista dos jacksonianos [12] e dos neoconservadores que dominam a política externa dos Estados Unidos, para os quais o uso da expressão “fascismo islâmico” é útil sobretudo por sua carga emocional, pois permite semear o medo. E é aí que reside o principal perigo. Ao acreditar na idéia de que o Ocidente combate um novo fascismo e novos Hitler, prepara-se a opinião pública para aceitar a idéia de que a guerra pode e deve ser “preventiva”; que a resposta para a “ameaça fascista” deve ser pesada; e que, portatanto, está justificada quaisquer que sejam as conseqüências a vidas humanas. “Os aliados bombardearam Dresden”, retrucam os neoconservadores diante das críticas ao lançamento, pelos F16 israelenses, de centenas de bombas com submunições nos bairros libaneses de alta densidade residencial.

Essa obstinação em querer “nazificar” seu adversário não é nova. Periodicamente, os meios de comunicação ocidentais descobrem um “IV Reich” e um “novo Füher”. Sucessivamente, Gamal Abdel Nasser, Yasser Arafat, Saddam Hussein, Slobodan Milosevic e, hoje, Mahmoud Ahmadinejad foram comparados a Hitler. Nasser foi chamado de o “Hitler do Nilo”. Menahem Begin chamou Arafat de o “Hitler árabe”.

Como se procura preparar uma guerra

Hoje, o caricatural presidente iraniano Ahmadinejad, e seus discursos que negam o geonício judeu, oferecem um novo terreno fértil para as manipulações da mídia. Foi assim que o neoconservador iraniano Amir Taheri, ex-colaborador do Xá, lançou uma “notícia” de que o Irã se apressava em obrigar os judeus iranianos a usarem a estrela amarela. Ainda que falsa, essa informação apareceu na primeira página do jornal canadense The National Post, fundado por Conrad Black, com uma grande manchete: “O IV Reich”. Mesmo que essa informação tenha sido vigorosamente contestada pelos judeus iranianos e por toda a imprensa, nada mudou relativamente à questão. O “golpe da mídia” teve êxito e, a partir de então, centenas de milhares de canadenses e de norte-americanos ficaram convencidos de que os judeus iranianos usam a estrela amarela e que o Irã representa exatamente um IV Reich. O que será, obviamente, muito útil se os Estados Unidos decidirem lançar, contra o Irã, uma nova guerra preventiva que fará milhares de vítimas civis.

Os utilizadores da expressão “islamo-fascismo” têm em comum querer atacar e praticar as ações militares preventivas conduzidas em nome da “guerra mundial contra o terrorismo”. Ao longo dos anos, Bernard Lewis popularizou mais ou menos abertamente a noção de acordo com a qual os árabes e os “orientais” somente compreendem pela força, noção de que os generais franceses Jacques Massu e Marcel Bigeard também compartilham e que colocaram em prática na Argélia, com o conhecido sucesso. Lewis teria se inspirado muito bem na leitura de Hannah Arendt, que escreveu: “Não obstante todas as esperanças do contrário, parece que há um argumento que os árabes são incapazes de compreender: é a força” [13].

Unir sob uma única bandeira, a de “islamo-fascistas”, dezenas de movimentos extraordinariamente diferentes, sempre em conflito uns com os outros, e tendo objetivos muito diferentes, permite enraizar o mito de um complô islâmico mundial, ocultar assim as questões geopolíticas e puramente profanas. E, portanto, não mais evocar as causas que levam ao nascimento da maior parte desses movimentos, principalmente as ocupações militares e os conflitos territoriais dos quais somente uma justa resolução pode permitir drenar o terreno sobre o qual prospera o terrorismo contemporâneo.

Prepara-se assim a opinião pública para novas guerras, simula-se sem muito trabalho a postura de Churchill e permite-se tratar simetricamente de “partidários do acordo de Munique” todos aqueles que se opõem a essas guerras tão absurdas quanto contraprodutivas. Em vez de neles ver espíritos lúcidos, são apresentados como “idiotas úteis”, encarnações modernas de Edouard Daladier e de Neville Chamberlain que, em 1938, assinaram os acordos de Munique com Hitler. “Nada pior dos que as pretensas lições da História, quando ela é mal compreendida e mal interpretada”, dizia Paul Valéry!

Tradução: Wanda Caldeira Brant
wbrant@globo.com



[1] Texto inicialmente publicado como suplemento no no. 24 da revista bimestral Minuit, Paris, maio de 1977.

[2] Ver seu artigo de 17 de agosto de 2006, “What is islamofascism?”

[3] 8 de setembro de 1990: “O autoritarismo governamental, para não dizer o islamo-fascismo, é mais regra do que exceção do Marrocos ao Paquistão.”

[4] Ler Alain Gresh, "Bernard Lewis et le gène de l’islam", Le Monde diplomatique, agosto de 2005.

[5] Porque, para ele, "um fascismo religioso inevitavelmente limitaria os poderes de seu dirigente, não só devido à oposição cultural do clérigo, mas também devido aos preceitos e aos valores veiculados pela religião tradicional”.

[6] Ver Démocratie et totalitarisme, Gallimard, Paris, 1965.

[7] Para simplificar, a teoria de Durkheim opõe a “solidariedade orgânica”, caracterizada pela diferenciação e por uma fraca consciência coletiva, à “solidariedade mecânica”, caracterizada pelas semelhanças e por uma forte consciência coletiva.

[8] Ver Le fascisme en action, Seuil, Paris, 2004, p. 345.

[9] Esse artigo foi republicado pelo Courrier International de 3 de novembro de 2005, com o título “Cause toujours, Ahmadinejad”.

[10] Reuters do dia 31 de agosto de 2006. Em outros tempos, essa notícia teria saído na primeira página dos grandes jornais norte-americanos.

[11] Para um panorama global dessas ligações perigosas, principalmente no Sudeste Asiático, ver a obra do professor da Columbia, Mahmood Mamdani, Good Muslim, Bad Muslim, America, the Cold War and the roots of terror (Pantheon, Nova York, 2004).

[12] Walter Russel Mead denomina jacksonianos, em alusão ao presidente Andrew Jackson (entre 1829 e 1837), os ultranacionalistas que não hesitam em intervir no exterior, mas que, ao contrário dos neoconservadores, não procuram se empenhar na “construção da nação”. Dick Cheney e Donald Rumsfeld podem ser qualificados de jacksonianos.

[13] Ler, de Hannah Arendt, “Peace or Armistice in the Near East”, in Review of Politics, Notre Dame, Indiana, janeiro de 1950.

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